Após termos efectuado cinco análises exemplificadoras da heráldica de fantasia, começamos agora um novo capítulo ao introduzir estas armas de domínio do Reino medieval de Jerusalém. Por armas de domínio entendemos quaisquer armas heráldicas que representem a propriedade pessoal e transmissível de um território secular. Acomoda senhorios, condados, ducados, reinos e impérios entre outros do mesmo género.
Para nossa surpresa encontrámos doze níveis semânticos, os quais parecem actuar diversamente de acordo com a apreciação primitiva de cada variante. Mais do que a quantidade, o que nos causa admiração é a simplicidade formal capaz de produzir um resultado semântico tão fértil. Além disso, não só os traços heráldicos podem ser explicados de mais de uma maneira, como também sugerirão que estes níveis organizaram-se em diversa medida ao longo do tempo, a confiar nas fontes. Esta densificação da estrutura do significado será difícil de ultrapassar no futuro por outro brasão.
Embora incorporando duas referências dissimilares - uma para Jerusalém e outra para Chipre - preferimos tratá-las como uma representação única e manter o título convencional, mencionando as armas como correspondentes apenas aos Reis de Jerusalém. Aparentemente, a mudança foi gradual e conservou a maior parte dos valores semânticos iniciais.
Aparecem logo em meados do século XIII na Historia Anglorum de Mateus de Paris, onde se vê uma cruz em prata firmada sobre um campo de ouro, lembrando a morte de João de Brienne, Rei Consorte de Jerusalém, em 1237[1]. A Rainha Maria faleceu em 1212 e João deixa a coroa para a filha de ambos, Isabella, e vai reger o Império Latino. O autor também admite para aquele Rei os mesmos esmaltes e cruz porém esta cantonada por quatro, quatro, três e três cruzetas[2][3]. A inconsistência cromática das delgadas cruzetas castanhas pode ser explicada pela necessidade de fazê-las em pequena dimensão, usando para isso a mesma pena que se utilizou para delinear os escudos e outras formas. Ademais, o uso de metal prateado no castelo de Castela na mesma página levanta a suspeita de alguma negligência no uso dos esmaltes.
Outros armoriais apresentam variações sobre o tema principal, o número de cruzetas varia e a cruz central, de formas variadas, podendo permutar os esmaltes com o campo. De modo a simplificar a organização deste artigo serão adoptadas as armas tradicionais dos Reis de Jerusalém: de prata uma cruz potenteia de ouro cantonada de quatro cruzetas do mesmo. Parece ser a interpretação que dá melhor uso à maior parte dos níveis semânticos em discussão. Outras composições podem ser encarados como versões incompletas, tratadas no corpo do texto sempre que oportuno.
Será possível tomar como verdadeiras estas armas do Reino de Jerusalém e confiar inteiramente nas fontes, até quando secundárias ou terciárias? Não é esta a nossa tarefa; apenas propomos soluções para a origem parofónica das formas e cores observadas nos brasões. Veremos contudo que até composições muito simples poderão acomodar-se confortavelmente no enredo heráldico que explorámos.
A numismática poderia parecer mais ilustrativa, já que se conhecem moedas de reinados mais antigos em Jerusalém, com a vantagem de uma identificação contemporânea confiável. Infelizmente estes hábitos pictóricos parecem ser distintos dos usados na heráldica. Mas isto não implicará que a parofonia esteja ausente, uma vez que é mesmo atestada nas primeiras cunhagens feitas pelo homem. Sabemos que não foi uma prática sistemática, coexistiu com inscrições, monogramas, efígies, imagens arquitectónicas e outros símbolos. Os seus referentes e metonímias provavelmente serão distintos, daí que este problema necessite de uma verificação aprofundada para melhor entendimento.
No que se refere ao nosso tema, aparecem no reverso das moedas a Torre de David e a Igreja do Santo Sepulcro, enquanto uma cruz, talvez de uso genérico e indiferenciado, é vista no obverso[4]. Por sua vez. os reis de Chipre e Jerusalém usaram o leão de Lusignan ou a cruz potenteia. Tentaremos considerar atempadamente como a heráldica e a numismática poderão convergir e auxiliar a nossa investigação.
O francês seria uma escolha óbvia como língua de conquista para a fase de verbalização. A maior parte dos cruzados era francófona e muitos dos governantes que estabeleceram o seu poder na Terra Santa pertenciam à mesma esfera linguística. Mais uma vez, o Latim poderia ser hipoteticamente considerado como instrumento geral de verbalização, mas não se encontraram parofonias razoavelmente adaptadas aos traços heráldicos disponíveis.
Começamos o nosso trabalho com um hidrónimo artificial, construído por uma antigo Rei de Judá: o Túnel de Ezequias. Transfere água da Fonte de Gião para a Piscina de Siloé, atravessando a parte mais antiga da cidade por baixo da terra, já que não existem quaisquer rios ali [5]. Produz-se assim a parofonia Ézéchias (fra. Ezequias) ~ Exequies (fra. exéquias) bizarra associação de uma fonte de vida aos rituais fúnebres.
Relativamente à necessidade de um hidrónimo para a metonimização do referente, não foi algo que tivéssemos proposto à partida dos nossos estudos, mas antes uma evidência inesperada que surgiu após inspeccionarem-se muitos armoriais. Aqui já tínhamos visto o Danúbio no brasão de Sagremor e o rio Itchen nas armas de fantasia de Eduardo o Confessor. Outras representações talvez mostrem com mais eloquência as conexões hidronímicas aos respectivos traços heráldicos. Tal será o caso das armas do Condado de Werdenberg (rio Tobel), do Condado da Borgonha (rio Saône), do Ducado da Baviera (rio Regen) e do Viscondado de Rochechouart (rio Vayres)[6]. Não sabemos ao certo quando e onde tudo começou mas esta aparenta ser uma peculiaridade dos brasões, ainda não detectada em moedas, selos primitivos ou o que quer que seja que tenha precedido a heráldica. Talvez no futuro se possa distinguir melhor a razão para estes hidrónimos aparecerem em tais circunstâncias.
O designante exequies precisa ser transformado em cor ou forma usando o conceito de exéquias, talvez por demais abrangente para desenhar-se de imediato. Acreditamos que esta transformação não foi decidida isoladamente, mas em conjunto com outros níveis semânticos considerados como viáveis pelo criador das armas. Para este fim tem lugar uma metonimização que selecciona apenas a conclusão da ideia contida em “exéquias”, o enterramento e sua representação objectiva - o sepulcro - e logo a sua matéria lítica. Focaliza-se o tema a partir do evento completo até ao pormenor da textura:
exéquias > túmulo > pedra > branca
O branco e o amarelo podem ser considerados como imanências da pedra como já vimos num grande número de espécimes que analisámos. O cinzento, o rosado e o acastanhado também poderiam ser presumidos mas devemo-nos limitar aos códigos cromáticos da heráldica. Talvez o amarelo, em vez do branco fosse considerado como uma escolha alternativa para a lápide que agora vemos. Devemos saber em primeiro lugar quem era o defunto, porque o significado será mais bem percebido na sua completa implementação.
O contributo deste nível para o significado visual do brasão não se limita ao esmalte. Auxilia, além disso, à definição das linhas fundamentais do enredo heráldico. Os funerais sugerem riquíssimas associações plásticas, a demandar os ritos que terão a sua conclusão na sepultura inferida nestas armas. A ser assim, também suporá um cadáver e um eventual epitáfio, que serão argumento para o próximo nível semântico. Ainda não sabemos o significado do restante mas o conjunto de cruzes poderia bem ser entendido como pertencendo às exéquias, num sentido geral.
Em condições menos restritivas seria possível derivar espontaneamente a individualidade de Cristo do dito cerimonial. Não parece poder haver qualquer dúvida na mentalidade dos cruzados: o funeral de maior significado em Jerusalém seria o que levou Jesus a enterrar. Contudo, as possibilidades semânticas destas armas são tão abundantes que o nome do defunto será declarado num nível próprio a ele dedicado. E seria esta eventualmente a razão porque nunca vemos um escudo pleno de prata como simplificação extrema das armas de Jerusalém: há sempre uma cruz presente.
A nossa percepção metodológica de [ch] como [k] em Ézéchias repete a heterofonia homográfica encontrada em Itchen ~ I chenne. É igualmente possível que os dialectos franceses setentrionais influenciassem os usos linguísticos ou que a pronúncia latina prevalecesse, evitando a palatalização logo desde o início. Desconhecemos em pormenores precisos a articulação e a ortografia do francês em Jerusalém por aquela altura, mas tudo o que precisamos é de algum bom-senso para decidir se as nossas parofonias podem ser admitidas ou não [7].
O índice de discrição é bastante superior ao que nos tínhamos habituado, já que k = 0,60, mas se escutarmos casualmente o som de Ézéchias ~ Exequies, a impressão é de uma similaridade aceitável. Isso explica por que tivemos de considerar a nossa escala de parofonias mais como um índice de admissibilidade do que como uma qualificação progressiva. A dimensão das duas palavras, emparelhadas com cinco elementos fonéticos, certamente não ajuda a diminuir a estimativa: mesmo se aplicarmos a correcção adequada às pequenas extensões, como se fez em Itchen ~ I chenne, esta apenas nos dará um valor ligeiramente inferior: k = 0,56.
Tais discrepâncias na avaliação dos índices de discrição são um facto a que devemos nos habituar, uma vez que se adoptou uma modelização heurística. Somente um modelo físico, baseado na correspondência das características acústicas, poderia produzir um resultado mais satisfatório. Devemos recordar, contudo, que uma boa parte das parofonias está também vinculada à escrita, o que enfraquece de algum modo esta modalidade de aperfeiçoamento.
Quem quer que seja a personalidade falecida, a sua condição manter-se-á na representação armorial. No caso especial de Cristo, num ambiente cristão, não se vê outra alternativa possível que não fosse a ressurreição ao terceiro dia. Devemos então considerar que o enredo acontece entre a Sexta Feira Santa e o Domingo de Páscoa. Isto porém não deverá necessariamente forçar-nos a incluir figurações como as chagas na nossa interpretação. As únicas fontes de inspiração primitivas que se devem considerar são as parofonias resultantes das metonímias do referente. Tudo o mais que se vê nos traços heráldicos, mesmo os complementos mais óbvios, não as devem contradizer.
Vale a pena, por fim, mencionar a importância atribuída ao Santo Sepulcro na época medieval, um dos motivos principais da conquista de Jerusalém. Godofredo de Bulhão, o primeiro soberano dos cruzados, foi declarado Protector do Santo Sepulcro e enterrado naquela Igreja, que assistiu a coroações e outros eventos da realeza depois disso. Será possível associar Jesus às exéquias estipuladas pelo esmalte? É o que veremos a seguir.
[1] DE VRIES, Hubert - Jerusalem - De Rode Leeuw - 2011 : Acedido a 23 de Setembro de 2012, disponível aqui.
[2] PARISIENSIS, Matthaei; MADDEN, Frederic (ed.) - Historia Anglorum - Londres: Longman, 1866-1869 : Acedido a 23 de Setembro de 2012, disponível aqui.
[3] PARISIENSIS, Matthaei - Historia Anglorum - (manuscrito), 1250-1259 : Acedido a 23 de Setembro de 2012, disponível aqui.
[4] WIELAND, Simon; RUTTEN, Lars; BEYELER, Markus - Medieval and Modern Coin Search Engine - mcsearch.info - 2012 : Acedido a 23 de Setembro de 2012, disponível aqui.
[5] CITY OF DAVID - Hezekiah’s Tunnel - (vídeo), s. d. : Acedido a 23 de Setembro de 2012, disponível aqui.
[6] DA FONTE, Carlos - Semântica Primitiva das Armas Nacionais e alguns dos seus Aspectos Sintácticos e Pragmáticos - Porto: FEUP, 2009 : Acedido a 23 de Setembro de 2012, disponível aqui.
[7] BETTENS, Olivier - Chantez-vous Français? - 1996-2012 : Acedido a 23 de Setembro de 2012, disponível aqui.
Reis de Jerusalém (I) | ||||||||||||
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Classificação | ↓ | Descrição | ||||||||||
Armas de Domínio | R | Reis de Jerusalém | ||||||||||
Hidrónimo | M | Túnel de Ezequias | ||||||||||
Língua de Conquista | V | Francês | ||||||||||
Denominante | A | Ézéchias | ||||||||||
Grafemização | A | É | Z | É | C | H | I | A | S | ||||||||||
Fonemização denominante | A | e | z | e | k | iA | ||||||||||
Emparelhamento | A | e | z | e | k | iA | ||||||||||
A | E | gz | e | k | i | |||||||||||
Coeficiente de transposição | A | 0,0 | 0,0 | 0,0 | 0,0 | 0,0 | ||||||||||
Coeficiente de carácter | A | 0,5 | 0,5 | 0,0 | 0,0 | 0,5 | ||||||||||
Coeficiente de posição | A | 1,5 | 1,0 | 0,0 | 0,0 | 0,5 | ||||||||||
Parcelas | A | 0,8 | 0,5 | 0,0 | 0,0 | 0,3 | ||||||||||
Índice de discrição | A | k = 0,60 | ||||||||||
Heterofonia homográfica | A | (Ézé)ch(ias) > [(eze)S(iA)] | ||||||||||
A | (Ézé)ch(ias) > [(eze)k(iA)] | |||||||||||
Fonemização designante | A | E | gz | e | k | i | ||||||||||
Grafemização | A | E | X | E | Q | U | I | E | S | ||||||||||
Designante | A | exequies | ||||||||||
Outros substantivos | E | exéquias | ||||||||||
Monossemia simples | S | prata | ||||||||||
S | exequies | |||||||||||
Metonímia simples | S | exéquias > túmulo > pedra > branca | ||||||||||
Esmalte | H | esbranquiçado | De prata | |||||||||
Imanência | C | pedra | ||||||||||
Contraste | C | ouro | ||||||||||
Número | H | uma | ||||||||||
Figuração | H | cruz | ||||||||||
Aspecto | H | potenteia | ||||||||||
Esmalte | H | de ouro | ||||||||||
Localização | H | cantonada de | ||||||||||
Número | H | quatro | ||||||||||
Figuração | H | cruzetas | ||||||||||
Esmalte | H | do mesmo |
(próximo artigo nesta série II/XII)
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