Para além da denominação dada à residência em si, a parofonia usa demónimos ou gentílicos - nomeando os habitantes enquanto tais - uma forma habitual de mudar o referente noutra palavra que irá transformar-se em imagem. Os Reis de Jerusalém viviam na sua capital sendo por isso hierosolimitanos; seria razoável verificar se estariam incluídos, já depois da metonímia referente, nas armas que lhes correspondiam. É de lembrar que tínhamos exemplificado este comportamento parofónico noutros estudos: os demónimos Aquincenses (lat. budense), a identificar a capital da Hungria, e J'Wincestrin (ano. Eu winchestrense), em associação com a antiga capital da Inglaterra.
Após estas considerações chegámos à parofonia: Hierosolimitains (fra. hierosolimitanos) ~ Hirauts sols limitants (fra. arautos únicos limitantes). Um denominante extenso a gerar um designante de dimensão equivalente; não obstante, foi possível obter um índice de discrição k = 0,41. A combinação destas palavras é difícil de replicar por quaisquer outras e sugere que, ou se aceita a solução, ou não será possível encontrar um substituto viável através das mesmas premissas básicas.
O termo Hirauts (fra. arautos) é rico em acepções, definindo uma polissemia simples, capaz de produzir ao menos quatro traços heráldicos. Em representação dos Evangelistas é responsável pelas obras de João, Lucas, Marcos e Mateus, definindo portanto o número quatro. Destes derivamos as formas rectangulares, oportunistamente tomadas como quadrados a ajustarem-se aos cantões da cruz principal. Os documentos escritos daquela época usavam o pergaminho, daí que o esmalte prateado seja uma coloração própria aos livros, ao admitir-se a encadernação mais simples possível. Por fim, os Evangelhos adornavam-se frequentemente com cruzes e as cruzetas nos quadrados adaptam-se bem à sua nova condição: simples iluminuras das escrituras sagradas.
O comportamento monossémico habitual reaparece nos restantes componentes do designante. Sols (fra. únicos) denota quantidade e diz que não se consentirão mais cruzetas do que as necessárias à simbologia dos quatro Evangelhos. Limitants (fra. limitantes) declara que os quatro livros obedecem às instruções fornecidas antes por entur (fra. à volta) e dispõem-se em torno da cruz, como ditava “entre”, arredado por agora deste nível semântico. Nesta declaração do designante estava-se a pensar porventura em outras variantes das armas de Jerusalém a incluir um grande número de cruzetas, uma vez que aquelas também cercavam o móvel principal. Poderia ser usada a versão alternativa sols imitants (fra. únicos imitadores), redundância de imitants × cions. Mas a parofonia iria perder demasiada solidez, o fim do primeiro vocábulo funde-se com o início do segundo e soa como [z] em vez de permanecer mudo.
Seria ainda possível que os livros e respectivas cruzetas assumissem papéis mais próximos ao enredo exequial, e talhassem a pedra junto à cruz. Esta interpretação integraria ambos os níveis semânticos em um único tema, o epitáfio, ou simplesmente transformá-los-ia num novo artefacto, talvez um selo, se acompanharmos a sugestão de Mateus 27:66 “E eles foram pôr o sepulcro em segurança, selando a pedra e confiando-o à vigilância dos guardas”.
Ao seguir a trama do nosso enredo, poderia parecer que a importância do finado devesse impor uma conexão com hirauts. Quem eram os arautos de Jesus? Representariam necessariamente a repercussão dos seus ensinamentos; ele já não estava disponível para fazer-se ouvir. Parece-nos útil dividir as primeiras contiguidades em duas sucessões distintas. Embora “Evangelho” não apareça a concluir a primeira sequência, esta palavra ajudará a definir tudo o mais. Refira-se que, por concisão, nem sempre mencionamos algumas das transformações mais evidentes. A metonimização que se segue, a mais importante de todas, segue do arauto até a mensagem, convergindo para outra que parte de Jesus em direcção à Sua mensagem, porque “Evangelho” pode ser traduzido como um “anúncio de boas novas”:
arauto > mensageiro > mensagem
Jesus > pregador > Evangelho > mensagem
As quantidades dependem de duas metonímias simples independentes, reconhecendo a variedade dos quatro Evangelhos aceites e usando “únicos” como dissuasor de mais cruzetas:
Evangelho > Evangelistas > quatro
únicos > quatro ou menos
A forma deriva das propriedades geométricas elementares do objecto considerado:
Evangelho > livro > rectangular > quadrado
As cruzetas já existentes assumirão o carácter de desenhos simbólicos sob a forma de iluminuras:
Evangelho > pregador > Jesus > cruz(etas)
A cor dependerá do material usado na capa; poderia considerar desde uma encadernação despojada até a mais exuberante, embora apenas a primeira seja conservada:
Evangelho > livro > pergaminho > esbranquiçado
Evangelho > livro > marfim > esbranquiçado
Evangelho > livro > prata > prateada
Os livros dispõem-se sobre a cruz grega de modo a fazer surgir uma cruz potenteia aos olhos do observador. A razão pela qual os autores das armas optaram por esta obstrução parcial parece evidente: um esforço para destacar os Evangelhos, apesar da camuflagem cromática. A disposição final assegura a visibilidade de todos os quatro lados de cada um dos polígonos. Estes são brancos, a cor dos Evangelhos, sobre branco, imitando a pedra do Sepulcro e iriam desvanecer-se ao suster os cantões de uma cruz grega. A despeito desta engenhosa composição, talvez devido à influência cultural da cruz de Jerusalém, será difícil para a maior parte dos observadores detectar os quadrados de imediato.
Poderemos comparar a dita disposição e as armas da linhagem portuguesa dos Evangelho trazendo o seguinte: “de azul uma cruz de ouro cantonada por quatro besantes de prata figurados respectivamente de uma águia, um anjo, um boi e um leão”. Não se sabe se inspiraram-se nas armas de Jerusalém mas mostram ao menos que a ideia era de todo natural, ao combinarem-se os quatro livros dos Evangelhos e os quatro braços e cantões da cruz.
Para auxiliar a aplicação das nossas parofonias ao seu efeito visual objectivo, tivemos de alterar a descrição inicial do brasão (a). Os brasonamentos destinam-se a facilitar a reprodução heráldica através do seu texto mas nem sempre preservam as ideias originais. A manter a coerência, deveria constar a cruz grega em vez da cruz potenteia, mas isto complicaria ainda mais as coisas, assim, apenas adaptámos a conclusão da frase e substituímos “entre” por outras palavras mais apropriadas que reflectissem a melhor correspondência com a génese semântica de todos os traços heráldicos (b).
(a) De prata uma cruz potenteia de ouro entre quatro cruzetas do mesmo.
(b) De prata uma cruz potenteia de ouro, sustida nos cantões por quatro quadrados do primeiro, cada um carregado com uma cruzeta do segundo.
A disposição difere um pouco do que foi visto no último nível semântico, então descrita como: 1 1 & 1 1. Desta vez os quatro quadrados sustêm a cruz, querendo isso dizer que tocam com os seus lados nos espaços definidos pela cruz nos cantões. Não há qualquer abreviatura disponível para este género de arranjos de modo que imaginámos a notação: 1 | (1) | 1 & 1 | (1) | 1, que se lê: “um sustém só sustém um e um sustém só sustém um”. As barras verticais “|” designam cada sustentação através das peças individuais “1” (cada um dos quadrados) de uma outra peça no interior de um parênteses “(1)” indicando que esta é a mesma ocorrência da peça só (a cruz principal) onde quer que apareça repetida por conveniência da notação. Embora inútil na heráldica medieval, pensou-se na sua aplicação a outros fenómenos figurativos que compartilhem as mesmas ideias fundamentais, já em existência há muitas centenas de anos atrás.
Naturalmente poderíamos considerar o couro, o metal, a madeira ou quaisquer materiais adequados à protecção dos livros mas apenas incluímos aqueles que justificassem a cor branca ou prateada. A solução metálica parece menos viável porque insinua uma cruz em ouro, que iria contradizer as proposições do próximo nível semântico. O conjunto de escolhas disponíveis parece vasto e qualquer um ficaria curioso por saber a motivação de estenderem-se os livros sobre a cruz e de evitarem-se esmaltes contrastantes. A camuflagem terá sido intencional? É difícil dizer.
O brasão dos Reis de Chipre e Jerusalém, na segunda parte deste estudo, irá justificar-se durante os seis últimos níveis semânticos. Como esta representação é idêntica à da primeira parte, poderia acontecer que uma versão tenha-se “acomodado” à outra; a coloração dos Evangelhos é precisamente um dos poucos traços heráldicos a permitir a liberdade de escolha nestas armas. Como é óbvio, não sabemos quando surgiram ambas as versões e avançar a proposição de uma génese simultânea seria, no mínimo, prematuro. Contudo, apenas no que diz respeito às armas dos Reis de Jerusalém, as considerações cromáticas finais serão tratadas no próximo artigo que analisará as possíveis razões para a infracção à “lei dos contrastes”.
Reis de Jerusalém (V) | |||||||||||||||||
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Classificação | ↓ | Descrição | |||||||||||||||
Armas de Domínio | R | Reis de Jerusalém | |||||||||||||||
Demónimo | M | Hierosolimitanos | |||||||||||||||
Língua de Conquista | V | Francês | |||||||||||||||
Denominante | A | Hierosolimitains | |||||||||||||||
Grafemização | A | H|I|E|R|O|S|O|L|I|M|I|T|A|I|N|S | |||||||||||||||
Fonemização denominante | A | je | R\ | o | z | o | l | i | m | i | t | Ẽ | |||||||||||||||
Emparelhamento | A | je | R\ | o | z | o | l | i | m | i | t | Ẽ | |||||||||||||||
A | i | R\ | o | s | o | l | i | m | i | t | Ã | ||||||||||||||||
Coeficiente de transposição | A | 0,0|0,0|0,0|0,0|0,0|0,0|0,0|0,0|0,0|0,0|0,0 | |||||||||||||||
Coeficiente de carácter | A | 1,0|0,0|0,0|0,5|0,0|0,0|0,0|0,0|0,0|0,0|0,5 | |||||||||||||||
Coeficiente de posição | A | 1,5|0,0|0,0|1,0|0,0|0,0|0,0|0,0|0,0|0,0|0,5 | |||||||||||||||
Parcelas | A | 1,5|0,0|0,0|0,5|0,0|0,0|0,0|0,0|0,0|0,0|0,3 | |||||||||||||||
Índice de discrição | A | k = 0,41 | |||||||||||||||
Fonemização designante | A | i | R\ | o | s | o | l | i | m | i | t | Ã | |||||||||||||||
Grafemização | A | H|I|R|A|U|T|S| |S|O|L|S| |L|I|M|I|T|A|N|T|S | |||||||||||||||
Designante | A | Hirauts sols limitants | |||||||||||||||
Notoriedade | E | arautos | |||||||||||||||
Metonímia convergente | S | arauto > mensageiro > mensagem | |||||||||||||||
S | Jesus > pregador > Evangelho > mensagem | ||||||||||||||||
Quantidade | E | únicos | |||||||||||||||
Geometria | E | limitantes | |||||||||||||||
Polissemia simples | S | quatro + quadrados + prata + cruzetas | |||||||||||||||
S | arautos | ||||||||||||||||
Monossemia composta | S | quatro | (entre) | |||||||||||||||
S | únicos | limitantes | ||||||||||||||||
Esmalte | H | De prata | |||||||||||||||
Número | H | uma | |||||||||||||||
Figuração | H | cruz | |||||||||||||||
Aspecto | H | potenteia | |||||||||||||||
Esmalte | H | de ouro | |||||||||||||||
Disposição | H | 1 | (1) | 1 & 1 | (1) | 1 | sustida | ||||||||||||||
Localização | H | define a cruz potenteia | nos cantões | ||||||||||||||
Conectivo | H | quadrados cruz | por | ||||||||||||||
Número | H | João, Lucas, Marcos, Mateus | quatro | ||||||||||||||
Metonímia simples | S | Evangelho > Evangelistas > quatro | |||||||||||||||
Metonímia simples | S | únicos > quatro ou menos | |||||||||||||||
Figuração | H | rectangular | quadrados | ||||||||||||||
Imanência | C | livro | |||||||||||||||
Encobrimento | C | cruz grega | |||||||||||||||
Orientação | C | imanência de livro | |||||||||||||||
Metonímia simples | S | Evangelho > livro > rectangular > quadrado | |||||||||||||||
Esmalte | H | esbranquiçado | do primeiro | ||||||||||||||
Imanência | C | pergaminho | |||||||||||||||
Contraste | C | ouro, prata | |||||||||||||||
Metonímia simples | S | Evangelho > livro > pergaminho > branco | |||||||||||||||
Número | H | 1 + 1 + 1 + 1 | cada um | ||||||||||||||
Localização | H | Evangelho | carregado | ||||||||||||||
Centralidade | C | diagonais do quadrado | |||||||||||||||
Conectivo | H | quadrados cruzetas | com | ||||||||||||||
Número | H | 1 | uma | ||||||||||||||
Metonímia simples | S | Evangelho > pregador > Jesus > cruz(eta) | |||||||||||||||
Figuração | H | cruzeta | |||||||||||||||
Esmalte | H | do segundo |