P: Por quê a tese parece contrariar a tradição narrativa heráldica?
R: Nunca esteve nos meus horizontes a análise específica e aprofundada deste problema, que considero algo a jusante dos objectivos da tese, até porque esta dúvida não será propriamente uma objecção fundamental. A tradição neste caso é o relato de um acontecimento passado que umas gerações vão transmitindo a outras sucessivamente, até aos dias de hoje. Não se tratam de factos comprovados cientificamente como verdadeiros, mas podemos considerá-los em alguns casos como fontes documentais subsidiárias, a maior parte das vezes com grandes reservas. Ao revivê-los, especialmente se directamente afectados por eles, somos tentados a ignorar que estes legados sofreram a decrepitude imposta naturalmente pelo tempo. Seria natural esperar que a memória de episódios de há muitas centenas de anos tenham sido alteradas em maior ou menor grau, quando não passaram mesmo a pertencer ao domínio da fantasia. Constatamos como outra ciência auxiliar da História, a Genealogia, baseia muitas vezes as suas narrativas fundacionais em actos ousados, generosos, galantes ou até mesmo testemunhando a intervenção divina para justificação da nobreza de cada linhagem. É bem verdade que não são tidas em grande conta pelos próprios genealogistas mas por alguma razão esta apreciação parece alterar-se quando o assunto em discussão é a heráldica.
O nosso posicionamento não será tão severo como no primeiro caso, nem tão benevolente como no segundo. Julgamos que toda a narrativa tradicional associada a um brasão deva estar sempre bem presente no estudo da pragmática construída à volta de cada criação armorial; muitas vezes é o único elo que nos resta para além dos traços heráldicos. Porém isso não quererá dizer que se lhe devam atribuir foros de premissas incontestáveis. Apesar de tudo, um número bastante razoável de armas analisadas e comparadas com aquelas narrativas apresentou pontos de contacto manifestos. O estado presente da investigação permite aconselhar e incentivar o estudo desses pontos de contacto de modo a poder considerá-los mesmo como justificativas que reforçam as nossas hipóteses. Mas nenhum dos casos em estudo permite garantir um acordo próximo do absoluto entre os factos narrados e a semântica da respectiva construção armorial feita segundo a nossa metodologia.
Ademais, os mecanismos expressivos são bem distintos. O modelo parofónico procura uma explicação metodológica, em que cada uma das explicações dos traços visuais se fundamenta num reduzidíssimo número de proposições metonímicas, aplicáveis a qualquer caso. Os modelos tradicionais, por sua vez, usam todos os recursos da língua para expor uma história, verídica ou não, ajustada aos componentes de cada brasão.
Resumindo, ao aceitar-se a tese que proponho, esta representaria, na verdade, a recuperação de uma tradição que se perdeu ou deturpou com o tempo. Não se poderá dizer, portanto, que contrarie a tradição mas apenas que apresenta uma nova versão da verdade dos factos. E como, quando desconhecemos a verdade absoluta, ela nem sempre é uma só, afirmamos apenas que, em média, os resultados da tese discordam em boa parte das versões tradicionais que a antecederam, apesar de concordarem com elas em alguns pontos particulares.
Escudo assinalado no Armorial de Zurique (Zürcher Wappenrolle) que se data de meados do século XIV, acompanhando várias outras armas de fantasia. Para a nossa análise tem o benefício de ser consensualmente reconhecido como falante, pelo menos na metade anterior relativa à porta. Os autores do texto e dos brasões parecem ter sido a mesma pessoa, inferindo-se daí uma data de execução simultânea. Apresenta ainda alguns acrescentamentos de mão distinta com letra do século XVI, entre os quais se incluem estas armas que agora estudamos. A interpretação da legenda correspondente seria segundo uns Portugal rex[1], em latim, ou segundo outros Portegalien[2], mais germanizada mas duvidosa. Inclinamo-nos pela a primeira versão, se bem que a leitura seja difícil mas haverá poucas dúvidas de que aquele escudo dizia respeito a Portugal.
Ademais da apreciação paleográfica, algumas destas inscrições suplementares surgem na forma alatinada: Hispania, Britania, Arragon, enquanto outras são decididamente germânicas: Schotten, Rom e Frankreich[3]. De qualquer modo, tratando-se de aditamento tardio, em pouco ou nada influenciaria os considerandos sobre a construção do denominante. Tampouco seria determinativo o idioma usado numa possível legenda original, dado que o brasonamento poderia ser cópia de um armorial precedente ou até de sua própria criação, sem que a verbalização da metonímia do referente seguisse necessariamente o texto. Isso parece acontecer com pouca frequência nos brasões fantasiosos, acreditamos contudo ter ocorrido aqui, empregando-se o latim.
O confronto com outros pergaminhos mostra armas de fantasia comuns ou muito semelhantes entre si como as de Jerusalém, Ruténia e Satrápia. Poderíamos ainda compará-las no presente documento com as entradas: Navarra, Inglaterra e Dinamarca que estão incompletas ou equivocadas, mas tal não se dá, ao tratarem-se, plausivelmente, de armas fantásticas inéditas. Volta-a pôr-se a pergunta do artigo anterior: desconheceria o autor a heráldica verdadeira do rei português? A resposta deverá ser igual; talvez haja mesmo um desconhecimento ainda maior porque não poderemos, de modo nenhum, afirmar a associação do esmalte azul e do besante dourado deste caso com as armas portuguesas.
O denominante parece derivar do referente Portugal enquanto território, a acreditar no texto junto às demais entradas originais do Armorial. Recorremos de seguida à lingua-franca latina, que classificamos desta vez como língua de fantasia, para constituir Portucalis em denominante[4]. A solução encontrada no par denominante-designante: Portucalis ~ porta cales, não é uma parofonia perfeita como o antecedente Portingale ~ porte ingal tratado em Portugal - Armas de Fantasia II, pois apresenta agora um índice de discrição k=0,30. Melhorámos, contudo, a proposta apresentada na dissertação: Portegalien ~ porta galla. E isto não só pelo critério da valorização do índice k mas também pelo hibridismo germano-latino aventado inicialmente e pela falta de integração com os traços restantes do escudo.
Pormenorizaremos a sequência de cálculo. Começamos por emparelhar as palavras, de modo a verificarmos coerentemente os sons a corresponderem-se em ambas, tendo-se achado o total de n=10 fonemas para cada um. Já sabemos que fonemas correspondentes idênticos sofrem penalização nula e que não ocorrendo, como dá-se frequentemente, deixarão de contribuir para o somatório, efectuado carácter a carácter. Da mesma maneira não encontramos transposições fonéticas e o coeficiente respectivo é nulo em todos os pares de fonemas. Existem apenas duas transformações. A primeira, mais notória, de /u/ em /a/, penaliza-se com o coeficiente de carácter c=1,0; a segunda, mais ligeira, de /i/ em /e/, recebe a penalização c=0,5. Quanto à penalização pelo lugar ocupado pelos fonemas nos vocábulos acham-se ambos no seu interior, implicando coeficientes de posição iguais p=1,0. Multiplicamos membro a membro e somamos obtendo o valor intermédio 1,0 x 1,0 + 0,5 x 1,0 = 1,50, cujo resultado multiplica-se pelo quociente 2/max(10,10) = 2/10 = 0,2, obtendo-se 1,50 x 0,2 e k=0,3. Sendo o índice de discrição k inferior à unidade podemos aceitar a proposição Portucalis ~ porta cales como parofonia heráldica.
O designante porta (lat. porta) cales (lat. estás quente) constitui uma monossemia composta por exprimir dois sentidos diferentes e ocasionar outros tantos traços heráldicos distintos, porém integrados semanticamente mediante composição metonímica. A porta está bem visível no traço heráldico e não oferece dificuldades de monta. O segundo termo, cales, ao integrar-se no ambiente estabelecido por porta, metonimizar-se-á em: estás quente > lugar quente. Deveríamos então responder à pergunta - Qual o lugar quente provido de uma porta? Pareceria aceitável prosseguirmos a metonimização assim: estás quente > lugar quente > Inferno. Esta solução mostra muito boa sintonia com a outra parte da metonímia composta, a convergir por meio do designante através de: porta > morada > Inferno.
Mesmo se pudermos considerar estes argumentos razoáveis não é nada razoável supor que o hipotético desenho do campo vermelho com uma porta pudesse ser entendido como o endereço de Satanás. Era preciso, consequentemente, refinar o arranjo, sem desobedecer à norma básica da simplificação a regrar o brasonamento medieval. Pensamos ter-se recorrido a opor um Céu ao Inferno, de modo que esta oposição afastasse quaisquer incertezas quanto ao assunto tratado. Complementou-se também o traço heráldico recorrendo a uma única metonímia do referente, desconsiderando desenhos por demais trabalhosos, como convirá e aparece recorrentemente na fantasia armorial.
O Inferno vê-se parcialmente no esmalte vermelho do vão da porta que, por sua vez, se representa a si mesma no designante porta. O Céu é o esmalte azul externo, enquanto o Sol, astro celeste por excelência e, neste aspecto, algo redundante, será pretensamente responsável pelo calor do Inferno, sem dúvida graças à Mão Divina. O astro-rei é uma simplificação, transformado em besante ou mesmo em bola[5]. O facto de não aparecer radiante como se usa no brasonamento pode explicar-se por emergir na etapa de sematização. Não se trata de peça principal, a gozar da plenitude semântica ou, caso secundária, de complementação inteiramente desprovida de sentido.
Na forma de adereço, o Sol é um elemento necessário ao entendimento da sematização do Céu, com o traço azul, e do Inferno, com o traço vermelho, inspirado secundariamente no calor solar. Apesar disso, incorpora alguma simplificação, além de imanências e contraste na sua outra qualidade de complemento visual. Algumas destas ideias poderiam ter nascido das numerosas passagens bíblicas à disposição dos autores, influência habitual na época, como por exemplo[6]: " ... Eles subiram a planície da terra e cercaram o acampamento dos santos e a cidade predilecta. Mas um fogo que caiu do céu devorou-os. O Diabo, que os tinha enganado, foi precipitado no lago de fogo e de enxofre, onde também estão a Besta e o Falso Profeta ... ".
As complementações usadas não modificam o desenho excepto em pormenores, quase todos demasiado notórios, como a orientação horizontal da porta, os contrastes e as imanências. No que se refere às duas folhas da porta, elas são necessárias pela simetria do traçado. Há a exigência semântica de mostrar o interior encarnado, conduzindo ao traço heráldico da porta aberta, inevitavelmente desequilibrada se apresentasse uma só folha. Os esmaltes do aro e da porta são da mesma cor, justificáveis pela regra da simplificação mas também coerentes com as cores da pedra e do metal a eles correspondentes. A madeira pareceria inadaptada a um Inferno abrasador. Inexistindo a parede reforça-se a ideia dissimulada ou recôndita atribuída à localização do abismo infernal. Por último, acrescentamos que não se põe a possibilidade de considerar apenas o arco e daí representar o Inferno sem porta. Isso seria, literalmente, deixar o Diabo à solta ![7]
[1] RUNGE, Heinrich - Die Wappenrolle von Zürich - Ein Heraldisches Denkmal des Vierzehnten Jahrhunderts - Zurique: Antiquarischen Gesellschaft in Zürich, 1860.
[2] CLEMMENSEN, Steen - The Zürich Armorial (Wappenrolle von Zürich) - Farum: Acedido a 31 de Janeiro de 2012, disponível em: <http://www.armorial.dk>, 2009.
[3] BIGALSKI, Gerrit - The Zürich Roll of Arms - Acedido a 31 de Janeiro de 2012, disponível em: < http://www.silverdragon.org/HERALDRY>, [s.d.].
[4] A sequência recorrente: referente - metonímia do referente - verbalização - acomodação - sematização - especificação - traço heráldico - complementação, é a mesma do exemplo anterior e está desdobrada na tabela que segue mais abaixo.
[5] Talvez porque aparente estar sustida pela porta.
[6] Ap 20, 9-10, ver AA. VV. - Bíblia Sagrada - Lisboa e Fátima: Difusora Bíblica, 4ª ed. 2003.
[7] Repetem-se, por comodidade, as abreviaturas menos evidentes usadas na tabela: Referente (R), Metonímia do Referente (M), Verbalização (V), Acomodação (A), Sematização (S), Especificação (E), Traço Heráldico (H) e Complementação (C).
Portugal - Armas de Fantasia I | ||||||||||||
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Classificação | ↓ | Descrição | ||||||||||
Armas de Fantasia | R | Portugal | ||||||||||
Territorial | M | Portugal | ||||||||||
Língua de Fantasia | V | Portucalis (latim) | ||||||||||
Denominante | A | Portucalis | ||||||||||
Grafemização | A | P | O | R | T | U | C | A | L | I | S | ||||||||||
Fonemização denominante | A | [ p | O | r | t | u | k | a | l | i | s ] | ||||||||||
Emparelhamento | A | [ p | O | r | t | u | k | a | l | i | s ] | ||||||||||
A | [ p | O | r | t | a | k | a | l | e | s ] | |||||||||||
Coeficiente de transposição | A | 0,0|0,0|0,0|0,0|0,0|0,0|0,0|0,0|0,0|0,0 | ||||||||||
Coeficiente de carácter | A | 0,0|0,0|0,0|0,0|1,0|0,0|0,0|0,0|0,5|0,0 | ||||||||||
Coeficiente de posição | A | 0,0|0,0|0,0|0,0|1,0|0,0|0,0|0,0|1,0|0,0 | ||||||||||
Parcelas | A | 0,0|0,0|0,0|0,0|1,0|0,0|0,0|0,0|0,5|0,0 | ||||||||||
Índice de discrição | A | k = 0,30 | ||||||||||
Fonemização designante | A | [ p | O | r | t | a | _ | k | a | l | e | s ] | ||||||||||
Grafemização | A | P | O | r | T | A | _ | C | A | L | E | S | ||||||||||
Designante | A | porta | cales | ||||||||||
Monossemia composta | S | porta | estás quente | ||||||||||
S | porta | lugar quente | |||||||||||
Arquitectura + Notoriedade | E | porta + Inferno | ||||||||||
Esmalte | H | céu | De azul | |||||||||
Contraste | C | prata, ouro | ||||||||||
Oposição | S | Inferno x Céu | ||||||||||
Número | H | 1 | uma | |||||||||
Figuração | H | porta | porta | |||||||||
Preenchimento | C | área do escudo | ||||||||||
Simetria | C | eixo do escudo | ||||||||||
Orientação | C | horizontal | ||||||||||
Centralidade | C | coração do escudo | ||||||||||
Conectivo | H | porta + folhas | com | |||||||||
Número | H | 2 | duas | |||||||||
Figuração | H | metades | folhas | |||||||||
Imanência | C | porta + Inferno | ||||||||||
Simetria | C | porta | ||||||||||
Atitude | H | deixando ver o Inferno | abertas | |||||||||
Esmalte | H | metálico | de prata | |||||||||
Contraste | C | azul, vermelho | ||||||||||
Conectivo | H | porta + vermelho | iluminada | |||||||||
Metonímia composta 1/2 | S | porta > morada > Inferno | ||||||||||
Esmalte | H | quente | de vermelho | |||||||||
Imanência | C | Inferno | ||||||||||
Contraste | C | prata | ||||||||||
Metonímia composta 2/2 | S | estás quente > lugar quente > Inferno | ||||||||||
Disposição | H | 1, 1 | encimada por | |||||||||
Número | H | 1 | um | |||||||||
Figuração | H | redondo | besante | |||||||||
Imanência | C | Sol | ||||||||||
Simplificação | C | desprovido de raios | ||||||||||
Adereço | C | astro celeste diurno | ||||||||||
Adereço | C | fonte de calor | ||||||||||
Esmalte | H | dourado | de ouro | |||||||||
Imanência | C | Sol | ||||||||||
Contraste | C | azul |
(próxima análise neste blog aqui)