Após termos efectuado cinco análises exemplificadoras da heráldica de fantasia, começamos agora um novo capítulo ao introduzir estas armas de domínio do Reino medieval de Jerusalém. Por armas de domínio entendemos quaisquer armas heráldicas que representem a propriedade pessoal e transmissível de um território secular. Acomoda senhorios, condados, ducados, reinos e impérios entre outros do mesmo género.
Para nossa surpresa encontrámos doze níveis semânticos, os quais parecem actuar diversamente de acordo com a apreciação primitiva de cada variante. Mais do que a quantidade, o que nos causa admiração é a simplicidade formal capaz de produzir um resultado semântico tão fértil. Além disso, não só os traços heráldicos podem ser explicados de mais de uma maneira, como também sugerirão que estes níveis organizaram-se em diversa medida ao longo do tempo, a confiar nas fontes. Esta densificação da estrutura do significado será difícil de ultrapassar no futuro por outro brasão.
Embora incorporando duas referências dissimilares - uma para Jerusalém e outra para Chipre - preferimos tratá-las como uma representação única e manter o título convencional, mencionando as armas como correspondentes apenas aos Reis de Jerusalém. Aparentemente, a mudança foi gradual e conservou a maior parte dos valores semânticos iniciais.
Aparecem logo em meados do século XIII na Historia Anglorum de Mateus de Paris, onde se vê uma cruz em prata firmada sobre um campo de ouro, lembrando a morte de João de Brienne, Rei Consorte de Jerusalém, em 1237[1]. A Rainha Maria faleceu em 1212 e João deixa a coroa para a filha de ambos, Isabella, e vai reger o Império Latino. O autor também admite para aquele Rei os mesmos esmaltes e cruz porém esta cantonada por quatro, quatro, três e três cruzetas[2][3]. A inconsistência cromática das delgadas cruzetas castanhas pode ser explicada pela necessidade de fazê-las em pequena dimensão, usando para isso a mesma pena que se utilizou para delinear os escudos e outras formas. Ademais, o uso de metal prateado no castelo de Castela na mesma página levanta a suspeita de alguma negligência no uso dos esmaltes.
Outros armoriais apresentam variações sobre o tema principal, o número de cruzetas varia e a cruz central, de formas variadas, podendo permutar os esmaltes com o campo. De modo a simplificar a organização deste artigo serão adoptadas as armas tradicionais dos Reis de Jerusalém: de prata uma cruz potenteia de ouro cantonada de quatro cruzetas do mesmo. Parece ser a interpretação que dá melhor uso à maior parte dos níveis semânticos em discussão. Outras composições podem ser encarados como versões incompletas, tratadas no corpo do texto sempre que oportuno.
Será possível tomar como verdadeiras estas armas do Reino de Jerusalém e confiar inteiramente nas fontes, até quando secundárias ou terciárias? Não é esta a nossa tarefa; apenas propomos soluções para a origem parofónica das formas e cores observadas nos brasões. Veremos contudo que até composições muito simples poderão acomodar-se confortavelmente no enredo heráldico que explorámos.
A numismática poderia parecer mais ilustrativa, já que se conhecem moedas de reinados mais antigos em Jerusalém, com a vantagem de uma identificação contemporânea confiável. Infelizmente estes hábitos pictóricos parecem ser distintos dos usados na heráldica. Mas isto não implicará que a parofonia esteja ausente, uma vez que é mesmo atestada nas primeiras cunhagens feitas pelo homem. Sabemos que não foi uma prática sistemática, coexistiu com inscrições, monogramas, efígies, imagens arquitectónicas e outros símbolos. Os seus referentes e metonímias provavelmente serão distintos, daí que este problema necessite de uma verificação aprofundada para melhor entendimento.
No que se refere ao nosso tema, aparecem no reverso das moedas a Torre de David e a Igreja do Santo Sepulcro, enquanto uma cruz, talvez de uso genérico e indiferenciado, é vista no obverso[4]. Por sua vez. os reis de Chipre e Jerusalém usaram o leão de Lusignan ou a cruz potenteia. Tentaremos considerar atempadamente como a heráldica e a numismática poderão convergir e auxiliar a nossa investigação.
O francês seria uma escolha óbvia como língua de conquista para a fase de verbalização. A maior parte dos cruzados era francófona e muitos dos governantes que estabeleceram o seu poder na Terra Santa pertenciam à mesma esfera linguística. Mais uma vez, o Latim poderia ser hipoteticamente considerado como instrumento geral de verbalização, mas não se encontraram parofonias razoavelmente adaptadas aos traços heráldicos disponíveis.
Começamos o nosso trabalho com um hidrónimo artificial, construído por uma antigo Rei de Judá: o Túnel de Ezequias. Transfere água da Fonte de Gião para a Piscina de Siloé, atravessando a parte mais antiga da cidade por baixo da terra, já que não existem quaisquer rios ali [5]. Produz-se assim a parofonia Ézéchias (fra. Ezequias) ~ Exequies (fra. exéquias) bizarra associação de uma fonte de vida aos rituais fúnebres.
Relativamente à necessidade de um hidrónimo para a metonimização do referente, não foi algo que tivéssemos proposto à partida dos nossos estudos, mas antes uma evidência inesperada que surgiu após inspeccionarem-se muitos armoriais. Aqui já tínhamos visto o Danúbio no brasão de Sagremor e o rio Itchen nas armas de fantasia de Eduardo o Confessor. Outras representações talvez mostrem com mais eloquência as conexões hidronímicas aos respectivos traços heráldicos. Tal será o caso das armas do Condado de Werdenberg (rio Tobel), do Condado da Borgonha (rio Saône), do Ducado da Baviera (rio Regen) e do Viscondado de Rochechouart (rio Vayres)[6]. Não sabemos ao certo quando e onde tudo começou mas esta aparenta ser uma peculiaridade dos brasões, ainda não detectada em moedas, selos primitivos ou o que quer que seja que tenha precedido a heráldica. Talvez no futuro se possa distinguir melhor a razão para estes hidrónimos aparecerem em tais circunstâncias.
O designante exequies precisa ser transformado em cor ou forma usando o conceito de exéquias, talvez por demais abrangente para desenhar-se de imediato. Acreditamos que esta transformação não foi decidida isoladamente, mas em conjunto com outros níveis semânticos considerados como viáveis pelo criador das armas. Para este fim tem lugar uma metonimização que selecciona apenas a conclusão da ideia contida em “exéquias”, o enterramento e sua representação objectiva - o sepulcro - e logo a sua matéria lítica. Focaliza-se o tema a partir do evento completo até ao pormenor da textura:
exéquias > túmulo > pedra > branca
O branco e o amarelo podem ser considerados como imanências da pedra como já vimos num grande número de espécimes que analisámos. O cinzento, o rosado e o acastanhado também poderiam ser presumidos mas devemo-nos limitar aos códigos cromáticos da heráldica. Talvez o amarelo, em vez do branco fosse considerado como uma escolha alternativa para a lápide que agora vemos. Devemos saber em primeiro lugar quem era o defunto, porque o significado será mais bem percebido na sua completa implementação.
O contributo deste nível para o significado visual do brasão não se limita ao esmalte. Auxilia, além disso, à definição das linhas fundamentais do enredo heráldico. Os funerais sugerem riquíssimas associações plásticas, a demandar os ritos que terão a sua conclusão na sepultura inferida nestas armas. A ser assim, também suporá um cadáver e um eventual epitáfio, que serão argumento para o próximo nível semântico. Ainda não sabemos o significado do restante mas o conjunto de cruzes poderia bem ser entendido como pertencendo às exéquias, num sentido geral.
Em condições menos restritivas seria possível derivar espontaneamente a individualidade de Cristo do dito cerimonial. Não parece poder haver qualquer dúvida na mentalidade dos cruzados: o funeral de maior significado em Jerusalém seria o que levou Jesus a enterrar. Contudo, as possibilidades semânticas destas armas são tão abundantes que o nome do defunto será declarado num nível próprio a ele dedicado. E seria esta eventualmente a razão porque nunca vemos um escudo pleno de prata como simplificação extrema das armas de Jerusalém: há sempre uma cruz presente.
A nossa percepção metodológica de [ch] como [k] em Ézéchias repete a heterofonia homográfica encontrada em Itchen ~ I chenne. É igualmente possível que os dialectos franceses setentrionais influenciassem os usos linguísticos ou que a pronúncia latina prevalecesse, evitando a palatalização logo desde o início. Desconhecemos em pormenores precisos a articulação e a ortografia do francês em Jerusalém por aquela altura, mas tudo o que precisamos é de algum bom-senso para decidir se as nossas parofonias podem ser admitidas ou não [7].
O índice de discrição é bastante superior ao que nos tínhamos habituado, já que k = 0,60, mas se escutarmos casualmente o som de Ézéchias ~ Exequies, a impressão é de uma similaridade aceitável. Isso explica por que tivemos de considerar a nossa escala de parofonias mais como um índice de admissibilidade do que como uma qualificação progressiva. A dimensão das duas palavras, emparelhadas com cinco elementos fonéticos, certamente não ajuda a diminuir a estimativa: mesmo se aplicarmos a correcção adequada às pequenas extensões, como se fez em Itchen ~ I chenne, esta apenas nos dará um valor ligeiramente inferior: k = 0,56.
Tais discrepâncias na avaliação dos índices de discrição são um facto a que devemos nos habituar, uma vez que se adoptou uma modelização heurística. Somente um modelo físico, baseado na correspondência das características acústicas, poderia produzir um resultado mais satisfatório. Devemos recordar, contudo, que uma boa parte das parofonias está também vinculada à escrita, o que enfraquece de algum modo esta modalidade de aperfeiçoamento.
Quem quer que seja a personalidade falecida, a sua condição manter-se-á na representação armorial. No caso especial de Cristo, num ambiente cristão, não se vê outra alternativa possível que não fosse a ressurreição ao terceiro dia. Devemos então considerar que o enredo acontece entre a Sexta Feira Santa e o Domingo de Páscoa. Isto porém não deverá necessariamente forçar-nos a incluir figurações como as chagas na nossa interpretação. As únicas fontes de inspiração primitivas que se devem considerar são as parofonias resultantes das metonímias do referente. Tudo o mais que se vê nos traços heráldicos, mesmo os complementos mais óbvios, não as devem contradizer.
Vale a pena, por fim, mencionar a importância atribuída ao Santo Sepulcro na época medieval, um dos motivos principais da conquista de Jerusalém. Godofredo de Bulhão, o primeiro soberano dos cruzados, foi declarado Protector do Santo Sepulcro e enterrado naquela Igreja, que assistiu a coroações e outros eventos da realeza depois disso. Será possível associar Jesus às exéquias estipuladas pelo esmalte? É o que veremos a seguir.
[1] DE VRIES, Hubert - Jerusalem - De Rode Leeuw - 2011 : Acedido a 23 de Setembro de 2012, disponível aqui.
[2] PARISIENSIS, Matthaei; MADDEN, Frederic (ed.) - Historia Anglorum - Londres: Longman, 1866-1869 : Acedido a 23 de Setembro de 2012, disponível aqui.
[3] PARISIENSIS, Matthaei - Historia Anglorum - (manuscrito), 1250-1259 : Acedido a 23 de Setembro de 2012, disponível aqui.
[4] WIELAND, Simon; RUTTEN, Lars; BEYELER, Markus - Medieval and Modern Coin Search Engine - mcsearch.info - 2012 : Acedido a 23 de Setembro de 2012, disponível aqui.
[5] CITY OF DAVID - Hezekiah’s Tunnel - (vídeo), s. d. : Acedido a 23 de Setembro de 2012, disponível aqui.
[6] DA FONTE, Carlos - Semântica Primitiva das Armas Nacionais e alguns dos seus Aspectos Sintácticos e Pragmáticos - Porto: FEUP, 2009 : Acedido a 23 de Setembro de 2012, disponível aqui.
[7] BETTENS, Olivier - Chantez-vous Français? - 1996-2012 : Acedido a 23 de Setembro de 2012, disponível aqui.
Reis de Jerusalém (I) | ||||||||||||
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Classificação | ↓ | Descrição | ||||||||||
Armas de Domínio | R | Reis de Jerusalém | ||||||||||
Hidrónimo | M | Túnel de Ezequias | ||||||||||
Língua de Conquista | V | Francês | ||||||||||
Denominante | A | Ézéchias | ||||||||||
Grafemização | A | É | Z | É | C | H | I | A | S | ||||||||||
Fonemização denominante | A | e | z | e | k | iA | ||||||||||
Emparelhamento | A | e | z | e | k | iA | ||||||||||
A | E | gz | e | k | i | |||||||||||
Coeficiente de transposição | A | 0,0 | 0,0 | 0,0 | 0,0 | 0,0 | ||||||||||
Coeficiente de carácter | A | 0,5 | 0,5 | 0,0 | 0,0 | 0,5 | ||||||||||
Coeficiente de posição | A | 1,5 | 1,0 | 0,0 | 0,0 | 0,5 | ||||||||||
Parcelas | A | 0,8 | 0,5 | 0,0 | 0,0 | 0,3 | ||||||||||
Índice de discrição | A | k = 0,60 | ||||||||||
Heterofonia homográfica | A | (Ézé)ch(ias) > [(eze)S(iA)] | ||||||||||
A | (Ézé)ch(ias) > [(eze)k(iA)] | |||||||||||
Fonemização designante | A | E | gz | e | k | i | ||||||||||
Grafemização | A | E | X | E | Q | U | I | E | S | ||||||||||
Designante | A | exequies | ||||||||||
Outros substantivos | E | exéquias | ||||||||||
Monossemia simples | S | prata | ||||||||||
S | exequies | |||||||||||
Metonímia simples | S | exéquias > túmulo > pedra > branca | ||||||||||
Esmalte | H | esbranquiçado | De prata | |||||||||
Imanência | C | pedra | ||||||||||
Contraste | C | ouro | ||||||||||
Número | H | uma | ||||||||||
Figuração | H | cruz | ||||||||||
Aspecto | H | potenteia | ||||||||||
Esmalte | H | de ouro | ||||||||||
Localização | H | cantonada de | ||||||||||
Número | H | quatro | ||||||||||
Figuração | H | cruzetas | ||||||||||
Esmalte | H | do mesmo |
(próximo artigo nesta série II/XII)
Este sexto e último nível semântico era de tal modo imperceptível que apenas encontrou-se ao concluirmos as nossas análises. Uma das razões foi que não afectava categoricamente qualquer traço heráldico como cores ou formas, redundante com tudo aquilo que tínhamos já tratado antes. Para este nível usámos o cognome de Eduardo - o Confessor - que poderemos classificar no género antroponímico relativo à metonímia do referente. É interessante observar que, comparando-o às outras descrições utilizadas: Rei, Santo, Eduardo e winchestrense, será este o mais característico. Os demais apenas fazem sentido quando reunidos mas “o Confessor” tem a qualidade de poder evocar facilmente a nossa referência, Eduardo, mesmo quando sozinho, porque existiram muitos outros reis, santos, Eduardos e winchestrenses.
Como não resultou nenhum efeito heráldico deste nível deveríamos duvidar da adequação de considerá-lo na análise. Uma grande virtude seria despistar quaisquer incompatibilidades entre os diversos níveis. Obviamente isto será mais vantajoso se detectado durante as etapas analíticas iniciais. A parte mais difícil dos nossos estudos é a recolha de parofonias razoáveis, que combinem-se adequadamente umas com as outras ao integrarem um enredo heráldico. No início de cada investigação, quando nada se sabe sobre a motivação dos traços heráldicos, uma vez que se encontre um direccionamento tendencial, todos os níveis semânticos estão obrigados a obedecê-lo.
Um benefício adicional será determinar se um tal comportamento reproduz-se consistentemente no nosso corpus, levando eventualmente à descoberta de outras associações, apenas aparentes pela observação das ocorrências como um todo. Foi este o procedimento que nos permitiu identificar a maior parte da estrutura implícita nas parofonias, desenvolvendo as tipologias que nos auxiliaram a estabelecer vínculos comuns a armas distintas.
A organização motivacional é muito peculiar neste exemplo das armas de Santo Eduardo, uma vez que o enredo parece criado por dois autores distintos, separados por centenas de anos. O mais antigo, ligado à representação numismática, refere Eduardo como rei; o mais recente descreve a sua glorificação como santo. Se não soubéssemos da existência das moedas tudo seria muito mais difícil. O exame semântico poderia desviar-se para soluções diferentes, presumivelmente piores, ou até deter-se porque, por exemplo, a palavra anglo-normanda mais usada para designar um soberano era rei e não roi.
A parofonia encontrada é Confessur (ano. Confessor) ~ Qu'hom fait sur (ano. que se faz sobre). A forma moderna em francês, qu'on, dissimula a origem da palavra, ligada a uma forma impessoal de hom (ano. homem), actuando como “um” ou “nós”. A frase está incompleta e devemos buscar o termo que consumará o seu possível significado. No presente contexto poderemos apenas sugerir o substrato heráldico para esta função. Após determinarem-se todas as figurações e esmaltes tudo o que precisamos fazer é desenhá-las e pintá-las sobre o escudo. Este é o tema que qu'hom fait sur justifica.
O índice de discrição totaliza k = 0,14 e a média aritmética de todos os seis níveis é k = 0,08, um resultado extremamente baixo, talvez indicando que a maior parte, senão mesmo todas as soluções propostas, não poderão ser melhoradas no que se refere à parofonia. Note-se que esta metodologia não fornece provas específicas para quaisquer proposições parofónicas. Estabelecemos apenas que o conjunto de propostas para um mesmo brasão com os respectivos níveis semânticos poderá eventualmente considerar-se como coerente e portanto quase impossível de considerar como estatisticamente fortuito. Mas mesmo assim é impossível garantir que um ou dois destes níveis não estejam equivocados.
É decerto importante encontrar outras representações heráldicas que repitam o mesmo tipo de associações e comportamentos visuais para garantir uma justificação válida. Será contudo preferível utilizar evidências históricas triviais como documentos e artefactos. Isso nem sempre é fácil e virtualmente impossível para as armas de fantasia, como estas que acabámos de estudar agora.
Repare-se que tomámos os fonemas [Om] emparelhados com [Õ], o que poderá parecer estranho. Na realidade, [O] e [m] são dois fonemas distintos mas terão necessariamente de ser comparados com a nasalização [Õ], uma sonoridade elementar. Se obedecermos cegamente à metodologia, ao usar-se o emparelhamento formal [Õ][_] ~ [O][m], obteríamos penalizações excessivamente altas durante o cálculo de k. O efeito numérico no índice de discrição seria o mesmo que, digamos, [Õ][_] ~ [O][s], o que é inaceitável. O mesmo critério foi aplicado antes com [tS] e [S] para a parofonia Itchen ~ I chenne.
Terminamos assim esta análise, uma das mais difíceis que já fizemos, com o número recorde de seis níveis semânticos. Esta foi a mesma quantidade encontrada nas armas primitivas dos reis de Portugal, que consumiram a maior parte do nosso tempo e empenho. Serão verdadeiros? Não sabemos, mas lembrando que todos os seus índices de discrição são extremamente baixos e que os níveis semânticos interagem coerentemente, a resposta tenderá a ser afirmativa.
Introduziremos algumas ideias relativas a uma justificação probabilística. Tome-se a parofonia Seint ~ Cinq como exemplo e tentem-se encontrar “trocadilhos” com Cinq ou equivalentes como “V”, “B”, “quinteto”, “quina”, etc., a emparelhar com outras palavras em francês arcaico, relacionadas de algum modo consistente com Santo Eduardo. De modo a compatibilizar-se com a nossa análise o índice de discrição não poderá ultrapassar 0,2. Para simplificar usam-se apenas parofonias elementares incluindo apenas uma palavra. Asseguramos que não será possível achar tantas mas suponha-se por exagero que encontrámos dez parofonias viáveis. O próximo passo é dividir dez pelo número de palavras existentes no francês arcaico usadas por um falante ordinário; digamos cinco mil.
Portanto, também de uma forma simplificada, a probabilidade de que esta solução parofónica derive apenas da sorte é cerca de 10/5000 = 0,002 ou 0,2% (num hipotético espaço amostral equiprovável). Se estendermos este resultado a seis níveis semânticos distintos e independentes, a eventualidade de uma coincidência simultânea valeria 0.002 × 0.002 × 0.002 × 0.002 × 0.002 × 0.002 = 0,000000000000000064 = 0,0000000000000064 %. Naturalmente, se tomarmos parofonias compostas devemos levar em conta todas as combinações possíveis, duas a duas, três a três, etc. O resultado seria ainda mais pequeno devido à enorme dimensão do divisor. Como se entenderá, esta é uma abordagem abreviada construída com elementos pouco complexos e idealizados. Mas é fácil de entender e oferece uma visão racional das ordens de magnitude envolvidas.
Eduardo o Confessor - Armas de Fantasia (VI) | ||||||||||||
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Classificação | ↓ | Descrição | ||||||||||
Armas de Fantasia | R | Eduardo o Confessor | ||||||||||
Antropónimo | M | Confessor | ||||||||||
Língua de Conquista | V | Anglo-Normando | ||||||||||
Denominante | A | Confessur | ||||||||||
Grafemização | A | C | O | N | F | E | S | S | U | R | ||||||||||
Fonemização denominante | A | k | Õ | f | E | s | y | R\ | ||||||||||
Emparelhamento | A | k | Õ | f | E | s | y | R\ | ||||||||||
A | k | Om | f | E | s | y | R\ | |||||||||||
Coeficiente de transposição | A | 0,0 | 0,0 | 0,0 | 0,0 | 0,0 | 0,0 | 0,0 | ||||||||||
Coeficiente de carácter | A | 0,0 | 0,5 | 0,0 | 0,0 | 0,0 | 0,0 | 0,0 | ||||||||||
Coeficiente de posição | A | 0,0 | 1,0 | 0,0 | 0,0 | 0,0 | 0,0 | 0,0 | ||||||||||
Parcelas | A | 0,0 | 0,5 | 0,0 | 0,0 | 0,0 | 0,0 | 0,0 | ||||||||||
Índice de discrição | A | k = 0,14 | ||||||||||
Fonemização designante | A | k | Om | f | E | s | y | R\ | ||||||||||
Grafemização | A | Q| U' | H | O | M | | F | A | I | T | | S | U | R | ||||||||||
Designante | A | qu'hom fait sur | ||||||||||
Abrangente | E | qu'hom fait sur | ||||||||||
Monossemia simples | S | que se faz sobre (o escudo) | ||||||||||
S | qu'hom fait sur | |||||||||||
Esmalte | H | De azul | ||||||||||
Número | H | uma | ||||||||||
Figuração | H | cruz | ||||||||||
Aspecto | H | florenciada | ||||||||||
Esmalte | H | em ouro | ||||||||||
Localização | H | acantonada de | ||||||||||
Número | H | quatro | ||||||||||
Figuração | H | merletas | ||||||||||
Conectivo | H | e | ||||||||||
Número | H | mais outra | ||||||||||
Localização | H | em ponta | ||||||||||
Número | H | todas | ||||||||||
Esmalte | H | do mesmo |
(próxima análise neste blog aqui)
O quinto nível semântico presente nas armas de Santo Eduardo o Confessor repete a inspiração geográfica da metonímia do referente que o antecedeu: Wincestrin. Além da alusão directa a Winchester podemos agora observar a representação verbal do seu rio Itchen. Similarmente, numa análise anterior, tínhamos aplicado o rio Danúbio como contiguidade de Sagremor e Buda. Não foi possível encontrar o nome anglo-normando para este hidrónimo, usámos portanto o equivalente em Inglês como denominante. Na verdade, nem sequer sabemos se existiu qualquer palavra específica naquela língua mas, aparentemente, não seria muito diferente de Itchen.
Entretanto, a segunda parte da nossa parofonia, o designante, continua a usar o anglo-normando. A este género de combinação chamamos hibridização linguística. Para as parofonias resulta frequentemente do desconhecimento sobre a forma de expressarem-se ambos os componentes adoptando-se apenas uma língua, como neste caso. Também podem aparecer com termos locais que sobrevivam no vocabulário de uma lingua franca. Em português, por exemplo, surgem palavras góticas e árabes simultaneamente com o latim de modo a construirem designantes.
A parofonia actual constrói-se com Itchen ~ I chenne (ano. uma canada), o último componente carecendo de ser ajustado antes de poderem comparar-se os seus fonemas com os do denominante. Uma primeira metonímia diverge a partir do grafema comum “I”, de reconhecimento simples, além disso sustentado por outras ocorrências na nossa investigação. É responsável pela transformação da letra “i” no numeral romano que vale um.
I(chenne) < I (letra i) < I
I (chenne) < I (número 1) < I
Além disso, assinalamos o uso de um par de grafemas, “ch”, com duas expressões possíveis, adoptadas convenientemente para auxiliar à parofonia. Em primeiro lugar quando Itchen deve ser comparado com a fonemização similar de chenne, em que “ch” soa como [S]. Em segundo lugar quando se constrói o significado e necessitamos da palavra que significa “uma canada”, ou seja, chenne, e “ch” soa agora como [k], como outras formas conhecidas - cane ou canne - muito próximas ou iguais à pronúncia actual em francês. Um exemplo semelhante vê-se nas armas dos primeiros reis de Portugal para a sua capital Coimbra. De modo a denotar que o mesmo grupo de letras configura sonoridades distintas baptizámos este fenómeno recorrente como heterofonia homográfica.
ch(enne) > [k(@n)]
ch(enne) < [S(@n)]
Concluídos a acomodação e o emparelhamento calculámos também o índice de discrição, k = 0,19. Este procedimento teve de recorrer a uma fórmula mais extensa, aplicada para compensar o escasso número de fonemas e consequente desequilíbrio (ver Fórmula 3.1 à p. 51 na dissertação). Desse modo levou-se em conta adicionalmente o número total de transformações (j = 1) divido pelo quadrado do valor máximo entre o denominante e designante, max (D, d)2 = max (4, 4)2 = (4)2 = 16. Subtraiu-se portanto 1/16 = 0,0625 da nossa fórmula principal para obter 0,250 - 0,0625 e o valor de k = 0,19.
Uma segunda metonímia justificará o azul do enredo heráldico das armas de Santo Eduardo. Já tínhamos mencionado que a aplicação do referido esmalte não era compatível com um céu, pelo menos neste brasão. É certo que cruzes e pássaros ajustar-se-iam com perfeição a este pano de fundo mas relembramos que as merletas não voam no escudo de Santo Eduardo. Sabemos ainda que o azul representa a água na heráldica, contudo cinco merletas a flutuar em torno de uma cruz que se afunda parece ser uma conceptualização algo inadequada. Qual a alternativa?
O designante chenne (ano. canada) era também entendido como medida de capacidade para líquidos, sentido reforçado pelo numeral romano I que o precede. Uma medida largamente utilizada com água, vinho e eventualmente com sólidos a granel. A próxima transformação recorre ao que quer que seja que estivesse a ser medido como ideia determinante, em vez do contentor propriamente dito. De um modo parecido dizemos: “Bebi um copo de leite” em vez de “Bebi o conteúdo de um copo de leite”. Mas o conteúdo de que falamos é efectivamente água por algumas boas razões.
A motivação mais óbvia para o azul é que este reproduz a cor da água heráldica, assim como o esmalte púrpura seria o mais natural para o vinho, o prata para o leite e assim por diante. Em segundo lugar, a quantidade relativamente pequena de uma canada seria apenas suficiente para “molhar” o campo, permitindo que os pássaros e a cruz fossem suportados pelo chão. A água, em terceiro lugar, embora representada através do azul, entende-se como transparente e se aplicada sobre o todo este permaneceria imaculadamente limpo. Em quarto lugar poderíamos dizer que este designante, à partida, também representa um rio, e não é necessário acrescentar de se constitui. Finalmente, devemos responder à pergunta - Que espécie de líquido seria suficientemente respeitável para acompanhar as cinco aves que representam a santidade de Eduardo e o símbolo do próprio Cristo? Não deveria prejudicar, empanar ou, de qualquer outro, modo dessacralizar o enredo que já temos organizado.
A resposta não poderia ser outra senão a água benta, em perfeita associação com o bando de aves e com a cruz. Observe-se, incidentalmente que é de hábito aspergida, talvez a significar que se estenda sobre as figurações, se ainda considerarmos a mencionada transparência. Note-se que a expressão em anglo-normando é euwe benette, mas pode-se admitir facilmente para o fim do século XIV que o inglês pudesse afectar a metonímia. Repare-se que tal não seria mesmo estritamente necessário, devido à significativa ambientação religiosa do brasão. Sem dúvida o todo é influenciado pelo estatuto de Eduardo como santo. Formalmente, trata-se de mais uma metonimização convergente:
Eduardo > Santo Eduardo > santo (ing. holy)
uma canada > conteúdo > água benta (ing. holy water)
Necessitamos ademais de justificar a convenção azul para a água. A percepção desta cor nas extensões pouco profundas considera-se como causada pela reflexão e dispersão da luz do céu, o que não se adaptaria bem a uma generalização. Para mais o mar é intrinsecamente azul mesmo durante as tempestades, quando os céus mostram-se acinzentados. Este azul apresenta-se quase imperceptível na neve e no gelo, mas tudo resulta do mesmo fenómeno físico. Provavelmente foram estas as tonalidades de azul que inspiraram a heráldica e muitas outras representações da água. De qualquer modo, o oceano é a mais poderosa, extensa e majestosa manifestação aquática, e o mecanismo de sublimação surge também para tingir qualquer forma ou quantidade de água com a cor azul; uma metonímia convergente tripla:
mar > azulado
água do mar > azulada
qualquer água > azulada
Deveríamos terminar aqui os nossos comentários sobre as armas de Santo Eduardo o Confessor, mas encontramos há pouco um sexto nível semântico. Assim esta série não acabará hoje como referimos antes. Felizmente este nível não prejudica a sequência de apresentação dos cinco anteriores; trata-se mais de um complemento que considera tudo o que já dissemos.
Eduardo o Confessor - Armas de Fantasia (V) | ||||||||||||
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Classificação | ↓ | Descrição | ||||||||||
Armas de Fantasia | R | Eduardo o Confessor | ||||||||||
Hidrónimo | M | Rio Itchen | ||||||||||
Hibridização Linguística | V | Inglês ~ Anglo-Normando | ||||||||||
Denominante | A | Itchen | ||||||||||
Grafemização | A | I | T | C | H | E | N | ||||||||||
Fonemização denominante | A | i | tS | @ | n | ||||||||||
Emparelhamento | A | i | tS | @ | n | ||||||||||
A | i | S | @ | n | |||||||||||
Coeficiente de transposição | A | 0,0 | 0,0 | 0,0 | 0,0 | ||||||||||
Coeficiente de carácter | A | 0,0 | 0,5 | 0,0 | 0,0 | ||||||||||
Coeficiente de posição | A | 0,0 | 1,0 | 0,0 | 0,0 | ||||||||||
Parcelas | A | 0,0 | 0,5 | 0,0 | 0,0 | ||||||||||
Índice de discrição | A | k = 0,19 | ||||||||||
Heterofonia homográfica | A | ch(enne) > [k(@n)] | ||||||||||
A | ch(enne) > [S(@n)] | |||||||||||
Fonemização designante | A | i | S | @ | n | ||||||||||
Grafemização | A | I | | C | H | E | N | N | E | ||||||||||
Designante | A | I chenne | ||||||||||
Outros substantivos | E | une chenne | ||||||||||
Metonímia divergente | S | I(chenne) > I (letra i) > I | ||||||||||
S | I (chenne) < I (número 1) < I | |||||||||||
Monossemia simples | S | azul | ||||||||||
S | I chenne | |||||||||||
Metonímia convergente | S | Eduardo > Santo Eduardo > santo (holy) | ||||||||||
S | 1 canada > conteúdo > água benta (holy water) | |||||||||||
Esmalte | H | azulada | De azul | |||||||||
Imanência | C | água | ||||||||||
Contraste | C | ouro | ||||||||||
Metonímia convergente, Sublimação | S | mar > azulado | ||||||||||
S | água do mar > azulada | |||||||||||
S | qualquer água > azulada | |||||||||||
Número | H | uma | ||||||||||
Figuração | H | cruz | ||||||||||
Aspecto | H | florenciada | ||||||||||
Esmalte | H | em ouro | ||||||||||
Localização | H | acantonada de | ||||||||||
Número | H | quatro | ||||||||||
Figuração | H | merletas | ||||||||||
Conectivo | H | e | ||||||||||
Número | H | mais outra | ||||||||||
Localização | H | em ponta | ||||||||||
Número | H | todas | ||||||||||
Esmalte | H | do mesmo |
(próximo artigo nesta série VI/VI)