Escudo assinalado no Armorial de Zurique (Zürcher Wappenrolle) que se data de meados do século XIV, acompanhando várias outras armas de fantasia. Para a nossa análise tem o benefício de ser consensualmente reconhecido como falante, pelo menos na metade anterior relativa à porta. Os autores do texto e dos brasões parecem ter sido a mesma pessoa, inferindo-se daí uma data de execução simultânea. Apresenta ainda alguns acrescentamentos de mão distinta com letra do século XVI, entre os quais se incluem estas armas que agora estudamos. A interpretação da legenda correspondente seria segundo uns Portugal rex[1], em latim, ou segundo outros Portegalien[2], mais germanizada mas duvidosa. Inclinamo-nos pela a primeira versão, se bem que a leitura seja difícil mas haverá poucas dúvidas de que aquele escudo dizia respeito a Portugal.
Ademais da apreciação paleográfica, algumas destas inscrições suplementares surgem na forma alatinada: Hispania, Britania, Arragon, enquanto outras são decididamente germânicas: Schotten, Rom e Frankreich[3]. De qualquer modo, tratando-se de aditamento tardio, em pouco ou nada influenciaria os considerandos sobre a construção do denominante. Tampouco seria determinativo o idioma usado numa possível legenda original, dado que o brasonamento poderia ser cópia de um armorial precedente ou até de sua própria criação, sem que a verbalização da metonímia do referente seguisse necessariamente o texto. Isso parece acontecer com pouca frequência nos brasões fantasiosos, acreditamos contudo ter ocorrido aqui, empregando-se o latim.
O confronto com outros pergaminhos mostra armas de fantasia comuns ou muito semelhantes entre si como as de Jerusalém, Ruténia e Satrápia. Poderíamos ainda compará-las no presente documento com as entradas: Navarra, Inglaterra e Dinamarca que estão incompletas ou equivocadas, mas tal não se dá, ao tratarem-se, plausivelmente, de armas fantásticas inéditas. Volta-a pôr-se a pergunta do artigo anterior: desconheceria o autor a heráldica verdadeira do rei português? A resposta deverá ser igual; talvez haja mesmo um desconhecimento ainda maior porque não poderemos, de modo nenhum, afirmar a associação do esmalte azul e do besante dourado deste caso com as armas portuguesas.
O denominante parece derivar do referente Portugal enquanto território, a acreditar no texto junto às demais entradas originais do Armorial. Recorremos de seguida à lingua-franca latina, que classificamos desta vez como língua de fantasia, para constituir Portucalis em denominante[4]. A solução encontrada no par denominante-designante: Portucalis ~ porta cales, não é uma parofonia perfeita como o antecedente Portingale ~ porte ingal tratado em Portugal - Armas de Fantasia II, pois apresenta agora um índice de discrição k=0,30. Melhorámos, contudo, a proposta apresentada na dissertação: Portegalien ~ porta galla. E isto não só pelo critério da valorização do índice k mas também pelo hibridismo germano-latino aventado inicialmente e pela falta de integração com os traços restantes do escudo.
Pormenorizaremos a sequência de cálculo. Começamos por emparelhar as palavras, de modo a verificarmos coerentemente os sons a corresponderem-se em ambas, tendo-se achado o total de n=10 fonemas para cada um. Já sabemos que fonemas correspondentes idênticos sofrem penalização nula e que não ocorrendo, como dá-se frequentemente, deixarão de contribuir para o somatório, efectuado carácter a carácter. Da mesma maneira não encontramos transposições fonéticas e o coeficiente respectivo é nulo em todos os pares de fonemas. Existem apenas duas transformações. A primeira, mais notória, de /u/ em /a/, penaliza-se com o coeficiente de carácter c=1,0; a segunda, mais ligeira, de /i/ em /e/, recebe a penalização c=0,5. Quanto à penalização pelo lugar ocupado pelos fonemas nos vocábulos acham-se ambos no seu interior, implicando coeficientes de posição iguais p=1,0. Multiplicamos membro a membro e somamos obtendo o valor intermédio 1,0 x 1,0 + 0,5 x 1,0 = 1,50, cujo resultado multiplica-se pelo quociente 2/max(10,10) = 2/10 = 0,2, obtendo-se 1,50 x 0,2 e k=0,3. Sendo o índice de discrição k inferior à unidade podemos aceitar a proposição Portucalis ~ porta cales como parofonia heráldica.
O designante porta (lat. porta) cales (lat. estás quente) constitui uma monossemia composta por exprimir dois sentidos diferentes e ocasionar outros tantos traços heráldicos distintos, porém integrados semanticamente mediante composição metonímica. A porta está bem visível no traço heráldico e não oferece dificuldades de monta. O segundo termo, cales, ao integrar-se no ambiente estabelecido por porta, metonimizar-se-á em: estás quente > lugar quente. Deveríamos então responder à pergunta - Qual o lugar quente provido de uma porta? Pareceria aceitável prosseguirmos a metonimização assim: estás quente > lugar quente > Inferno. Esta solução mostra muito boa sintonia com a outra parte da metonímia composta, a convergir por meio do designante através de: porta > morada > Inferno.
Mesmo se pudermos considerar estes argumentos razoáveis não é nada razoável supor que o hipotético desenho do campo vermelho com uma porta pudesse ser entendido como o endereço de Satanás. Era preciso, consequentemente, refinar o arranjo, sem desobedecer à norma básica da simplificação a regrar o brasonamento medieval. Pensamos ter-se recorrido a opor um Céu ao Inferno, de modo que esta oposição afastasse quaisquer incertezas quanto ao assunto tratado. Complementou-se também o traço heráldico recorrendo a uma única metonímia do referente, desconsiderando desenhos por demais trabalhosos, como convirá e aparece recorrentemente na fantasia armorial.
O Inferno vê-se parcialmente no esmalte vermelho do vão da porta que, por sua vez, se representa a si mesma no designante porta. O Céu é o esmalte azul externo, enquanto o Sol, astro celeste por excelência e, neste aspecto, algo redundante, será pretensamente responsável pelo calor do Inferno, sem dúvida graças à Mão Divina. O astro-rei é uma simplificação, transformado em besante ou mesmo em bola[5]. O facto de não aparecer radiante como se usa no brasonamento pode explicar-se por emergir na etapa de sematização. Não se trata de peça principal, a gozar da plenitude semântica ou, caso secundária, de complementação inteiramente desprovida de sentido.
Na forma de adereço, o Sol é um elemento necessário ao entendimento da sematização do Céu, com o traço azul, e do Inferno, com o traço vermelho, inspirado secundariamente no calor solar. Apesar disso, incorpora alguma simplificação, além de imanências e contraste na sua outra qualidade de complemento visual. Algumas destas ideias poderiam ter nascido das numerosas passagens bíblicas à disposição dos autores, influência habitual na época, como por exemplo[6]: " ... Eles subiram a planície da terra e cercaram o acampamento dos santos e a cidade predilecta. Mas um fogo que caiu do céu devorou-os. O Diabo, que os tinha enganado, foi precipitado no lago de fogo e de enxofre, onde também estão a Besta e o Falso Profeta ... ".
As complementações usadas não modificam o desenho excepto em pormenores, quase todos demasiado notórios, como a orientação horizontal da porta, os contrastes e as imanências. No que se refere às duas folhas da porta, elas são necessárias pela simetria do traçado. Há a exigência semântica de mostrar o interior encarnado, conduzindo ao traço heráldico da porta aberta, inevitavelmente desequilibrada se apresentasse uma só folha. Os esmaltes do aro e da porta são da mesma cor, justificáveis pela regra da simplificação mas também coerentes com as cores da pedra e do metal a eles correspondentes. A madeira pareceria inadaptada a um Inferno abrasador. Inexistindo a parede reforça-se a ideia dissimulada ou recôndita atribuída à localização do abismo infernal. Por último, acrescentamos que não se põe a possibilidade de considerar apenas o arco e daí representar o Inferno sem porta. Isso seria, literalmente, deixar o Diabo à solta ![7]
[1] RUNGE, Heinrich - Die Wappenrolle von Zürich - Ein Heraldisches Denkmal des Vierzehnten Jahrhunderts - Zurique: Antiquarischen Gesellschaft in Zürich, 1860.
[2] CLEMMENSEN, Steen - The Zürich Armorial (Wappenrolle von Zürich) - Farum: Acedido a 31 de Janeiro de 2012, disponível em: <http://www.armorial.dk>, 2009.
[3] BIGALSKI, Gerrit - The Zürich Roll of Arms - Acedido a 31 de Janeiro de 2012, disponível em: < http://www.silverdragon.org/HERALDRY>, [s.d.].
[4] A sequência recorrente: referente - metonímia do referente - verbalização - acomodação - sematização - especificação - traço heráldico - complementação, é a mesma do exemplo anterior e está desdobrada na tabela que segue mais abaixo.
[5] Talvez porque aparente estar sustida pela porta.
[6] Ap 20, 9-10, ver AA. VV. - Bíblia Sagrada - Lisboa e Fátima: Difusora Bíblica, 4ª ed. 2003.
[7] Repetem-se, por comodidade, as abreviaturas menos evidentes usadas na tabela: Referente (R), Metonímia do Referente (M), Verbalização (V), Acomodação (A), Sematização (S), Especificação (E), Traço Heráldico (H) e Complementação (C).
Portugal - Armas de Fantasia I | ||||||||||||
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Classificação | ↓ | Descrição | ||||||||||
Armas de Fantasia | R | Portugal | ||||||||||
Territorial | M | Portugal | ||||||||||
Língua de Fantasia | V | Portucalis (latim) | ||||||||||
Denominante | A | Portucalis | ||||||||||
Grafemização | A | P | O | R | T | U | C | A | L | I | S | ||||||||||
Fonemização denominante | A | [ p | O | r | t | u | k | a | l | i | s ] | ||||||||||
Emparelhamento | A | [ p | O | r | t | u | k | a | l | i | s ] | ||||||||||
A | [ p | O | r | t | a | k | a | l | e | s ] | |||||||||||
Coeficiente de transposição | A | 0,0|0,0|0,0|0,0|0,0|0,0|0,0|0,0|0,0|0,0 | ||||||||||
Coeficiente de carácter | A | 0,0|0,0|0,0|0,0|1,0|0,0|0,0|0,0|0,5|0,0 | ||||||||||
Coeficiente de posição | A | 0,0|0,0|0,0|0,0|1,0|0,0|0,0|0,0|1,0|0,0 | ||||||||||
Parcelas | A | 0,0|0,0|0,0|0,0|1,0|0,0|0,0|0,0|0,5|0,0 | ||||||||||
Índice de discrição | A | k = 0,30 | ||||||||||
Fonemização designante | A | [ p | O | r | t | a | _ | k | a | l | e | s ] | ||||||||||
Grafemização | A | P | O | r | T | A | _ | C | A | L | E | S | ||||||||||
Designante | A | porta | cales | ||||||||||
Monossemia composta | S | porta | estás quente | ||||||||||
S | porta | lugar quente | |||||||||||
Arquitectura + Notoriedade | E | porta + Inferno | ||||||||||
Esmalte | H | céu | De azul | |||||||||
Contraste | C | prata, ouro | ||||||||||
Oposição | S | Inferno x Céu | ||||||||||
Número | H | 1 | uma | |||||||||
Figuração | H | porta | porta | |||||||||
Preenchimento | C | área do escudo | ||||||||||
Simetria | C | eixo do escudo | ||||||||||
Orientação | C | horizontal | ||||||||||
Centralidade | C | coração do escudo | ||||||||||
Conectivo | H | porta + folhas | com | |||||||||
Número | H | 2 | duas | |||||||||
Figuração | H | metades | folhas | |||||||||
Imanência | C | porta + Inferno | ||||||||||
Simetria | C | porta | ||||||||||
Atitude | H | deixando ver o Inferno | abertas | |||||||||
Esmalte | H | metálico | de prata | |||||||||
Contraste | C | azul, vermelho | ||||||||||
Conectivo | H | porta + vermelho | iluminada | |||||||||
Metonímia composta 1/2 | S | porta > morada > Inferno | ||||||||||
Esmalte | H | quente | de vermelho | |||||||||
Imanência | C | Inferno | ||||||||||
Contraste | C | prata | ||||||||||
Metonímia composta 2/2 | S | estás quente > lugar quente > Inferno | ||||||||||
Disposição | H | 1, 1 | encimada por | |||||||||
Número | H | 1 | um | |||||||||
Figuração | H | redondo | besante | |||||||||
Imanência | C | Sol | ||||||||||
Simplificação | C | desprovido de raios | ||||||||||
Adereço | C | astro celeste diurno | ||||||||||
Adereço | C | fonte de calor | ||||||||||
Esmalte | H | dourado | de ouro | |||||||||
Imanência | C | Sol | ||||||||||
Contraste | C | azul |
(próxima análise neste blog aqui)