Sem dúvida, este será um dos mais respeitados e difundidos exemplares dentre as armas de fantasia, seja pela figura mítica do patrono de Inglaterra que precedeu a São Jorge, seja pelo uso em armas verdadeiras, seja pela sobrevivência de artefactos que aludem ao seu nome como o trono, o ceptro e a coroa real dos monarcas ingleses, seja pela própria consideração que os assuntos heráldicos tiveram e continuam a ter nas Ilhas Britânicas. Sinal desta importância é o aparente cuidado posto na concepção das armas que lhe são atribuídas. Totaliza seis níveis semânticos, coisa rara na parofonia heráldica, cada um com a sua metonimização para o mesmo referente: Eduardo o Confessor. Aparecem pelo fim do século XIV integrando as armas de Ricardo II, possivelmente inspiradas numa moeda cunhada ao tempo do Rei Santo[1].
Pela primeira vez surge-nos a própria condição do armigerado - rei - como metonímia do referente. A causa deverá ser, por um lado, a importância das responsabilidades assumidas por Eduardo, por outro a provável intencionalidade de cópia, adaptada da numária deste soberano. Não é possível garantir absolutamente que a peça já fosse ela própria falante, como temos observado em outros exemplares pré-heráldicos da numismática ou da sigilografia[2].
Tudo indica que sim: a estreiteza das hastes que é repetida nas armas, o acrescento dos florões, específico à linguagem heráldica, a diversidade das figurações ornitológicas e o facto de serem apenas quatro inicialmente. Estas complementaridades ficarão mais claras nos artigos subsequentes. Aceitando-se a suposição devemos inferir o uso do francês arcaico na parofonia das moedas, o que não será demasiado difícil sabendo-se que Eduardo viveu muito tempo na Normandia, tendo levado naturais dali para Inglaterra; a sua própria mãe era normanda[3].
De facto, não se utilizou como antes o latim na verbalização deste plano semântico mas o francês ou alternativamente o anglo-normando, caso a cópia das moedas não possa ser aceite, ao contrário do que acreditamos, em qualquer das hipóteses a diferença será insignificante. Decorre da nossa proposta que a verbalização fez-se numa língua de influência, ainda não falada na corte, como aconteceu mais tarde: Ce roi (fra. este rei) ~ Crois (fra. cruz)[4].
Ambos os termos em confronto, Ce roi e Crois, produzem uma homofonia absoluta após providencial intervenção metonímica, ocasionando um índice de discrição nulo. A alteração do fonema /s/ em /k/ processa-se segundo a metonimização divergente:
ce (roi) > ce (este) > [se]
c(roi) < c (letra cê) < [se].
A metonímia é divergente porque, a partir de um mesmo elemento - a fonemização em [se] da palavra ce e da letra cê - fornecem-se duas interpretações distintas. Ambas estão no denominante, com /s/ a montante e /k/ a jusante, produzindo artificialmente a palavra croi, desprovida de sentido, útil apenas no emparelhamento fonético com crois. Note-se que a metonimização dos fonemas ocorre na etapa de sematização por tratar-se de uma mudança semântica e não na fase de acomodação, fundamentalmente fonética.
Ce (fra. este) cumpre uma função importante na construção da parofonia mas apenas estabelece uma monossemia elementar. Refere redundantemente que este rei é o rei de que se fala e que será representado nas armas parofonizadas. A sematização da cruz é ainda mais simples porque não há que usar qualquer artifício, a cruz do designante produz a cruz do traço heráldico, ponto final.
É perfeitamente cabível uma cruz feita de ouro, bronze, madeira ou qualquer matéria que lhe dê a cor amarelada. De facto a atribuição dos esmaltes, especialmente nas armas de fantasia, sintoniza-se amiúde com um material aceitável na figuração, com a descrição habitual “de sua cor” nem sempre usada. Entretanto, neste caso particular as cromatizações resultam de dois planos semânticos específicos e distintos, um para o azul do campo e outro para o ouro dos móveis, como veremos mais tarde. Razão de apresentamos apenas o contorno da cruz na imagem ilustrativa.
Os complementos redundantes são os de costume excepto no que toca à orientação da cruz. Exaustivamente conformada pela nossa cultura é bem evidente que uma cruz de sentido genérico só poderá estar com os braços paralelos ao horizonte visual. Não é assim na cruz de Santo André mas torna-se necessário especificá-la pelo nome. Trata-se, portanto, de uma imanência cultural da cruz, embebida no seu traço heráldico de orientação e na própria palavra.
Seria ainda necessário justificar a presença dos lises nas extremidades da cruz. Há uma enorme variedade de cruzes na heráldica, diferenciáveis pelas espessuras, formas, número e extensão dos braços mas, sobretudo, pelo arremate das extremidades. Será possível que cada formato possa estar ligado a uma justificação semântica através do referente?
Não podemos responder à pergunta, apenas nos ocuparemos deste exemplo por agora; o conjunto das propostas que formos apresentando no futuro encarregar-se-á de delimitar as atribuições respectivas. Os argumentos nem sempre radicarão num desígnio semântico absoluto, poderão tratar-se de complementações que, fugindo ao enfeite inconsequente liguem-se, ainda que de modo débil, ao enredo heráldico.
Deveremos introduzir aqui a definição de aspecto, conceito sempre ligado às figurações, especialmente as geométricas. É muito semelhante à noção clássica de atitude que descreve a postura dos animais. O aspecto é a parte de uma figuração que se diferencia caracteristicamente de outras figurações semelhantes por meio de um detalhe formal. Não sendo uma figuração independente em si mesma, o aspecto ajuda a identificar vários tipos ou modelizações de um mesmo desenho. O endentado e o ondado das faixas, os palhetões e as argolas das chaves, as pétalas e os espinhos das flores, as orelhas e as nervuras das vieiras exemplificarão suficientemente.
Voltando à necessidade da nossa justificativa, apesar de roi designar textualmente o rei, a associação deste conceito através da expressão visual de uma cruz grega simples não é de nenhum modo aparente. De mais a mais, na maior parte das parofonizações reais que estudámos verificou-se esse modo de analogia heterogénea entre a linguagem e a imagem. A maneira mais fácil de designar um rei apenas por um objecto é o uso de uma coroa, mais raro será ver o traço de aspecto numa cruz diferenciado por uma ou mais coroas.
Singularmente, para o rei de que nos ocupamos é possível encontrar uma peça histórica de relevo: a Coroa de Santo Eduardo[5]. O artefacto actual é uma jóia da Coroa Britânica, cópia de outra que existiu antes, esta talvez usada pelo referente. Se assim aconteceu de facto, não é demasiado importante, mas sim que o autor das armas pudesse estar convencido da sua autenticidade ou representatividade. Como a Coroa de Santo Eduardo apresenta quatro florões na sua circunferência, cada um deles deve ter sido incorporado às hastes da cruz heráldica obedecendo à metonimização:
rei > coroa > Coroa de Santo Eduardo > quatro florões
rei > Eduardo > Coroa de Santo Eduardo > quatro florões.
A metonímia é convergente, ou seja, sendo composta, ambas as linhas de contiguidade semântica vão ter ao mesmo conceito. Isso também acontece no estudo Salernum ~ Sal eremum relativamente ao sol.
Por outro lado, os florões são elementos habituais e característicos das coroas e mesmo que não existisse o artefacto seria possível fazer a associação; decerto com menor brilho expressivo. A figuração que estudamos é igualmente apresentada sob a forma de cruz patonce, com as hastes concavadas a crescer para o exterior, os lises mais curtos e as pétalas externas em concordância com o perímetro. Não vemos razão para alterar o nosso raciocínio mas comentamos que nesta circunstância poderíamos considerar cada inflorescência como uma coroa muito simplificada, para além dos mais óbvios florões.
[1] HERALDIC TIMES - The Arms of Edward the Confessor - s.d. : Acedido a 18 de Julho de 2012, http://heraldictimes.org/2010/12/10/the-arms-of-edward-the-confessor (inacessível).
[2] MICHELSEN, Mike - The Coat of Arms of Edward the Confessor - Mikes passing Thoughts Blog - 2010 : Acedido a 18 de Julho de 2012, disponível aqui.
[3] LUARD, Henry H. (ed.) - Lives of Edward the Confessor. La Estoire de Seint Aedward le Rei. Vita Beati Edvardi Regis et Confessoris. Vita Aeduuardi Regis qui apud Westmonasterium requiescit - Londres: Longman, 1858 : Acedido a 18 de Julho de 2012, disponível aqui.
[4] GODEFROY, Frédéric - Dictionnaire de l'Ancienne Langue Française et de tous ses Dialectes du IXème au XVème Siècle - Paris, 1880-1895 : Acedido a 18 de Julho de 2012, disponível aqui.
[5] SIDDONS, Michael - Regalia et Cérémonies du Royaume-Uni - Bulletin du Centre de Recherche du Château de Versailles, nº 2 - 2005 : Acedido a 18 de Julho de 2012, disponível aqui.
Eduardo o Confessor - Armas de Fantasia (I) | ||||||||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Classificação | ↓ | Descrição | ||||||||||
Armas de Fantasia | R | Eduardo o Confessor | ||||||||||
Condição | M | Rei | ||||||||||
Língua de Influência | V | Francês | ||||||||||
Denominante | A | ce roi | ||||||||||
Redundância | S | ce | ||||||||||
S | este aqui representado | |||||||||||
Monossemia simples | S | este rei | ||||||||||
S | este rei aqui representado | |||||||||||
Metonímia divergente | S | ce (roi) > ce (este) > [se] | ||||||||||
S | c(roi) < c (letra cê) < [se] | |||||||||||
Grafemização | A | C | R | O | I | ||||||||||
Fonemização denominante | A | k | R | w | a | ||||||||||
Emparelhamento | A | k | R | w | a | ||||||||||
A | k | R | w | a | |||||||||||
Coeficiente de transposição | A | 0,0 | 0,0 | 0,0 | 0,0 | ||||||||||
Coeficiente de carácter | A | 0,0 | 0,0 | 0,0 | 0,0 | ||||||||||
Coeficiente de posição | A | 0,0 | 0,0 | 0,0 | 0,0 | ||||||||||
Parcelas | A | 0,0 | 0,0 | 0,0 | 0,0 | ||||||||||
Índice de discrição | A | k = 0,0 | ||||||||||
Fonemização designante | A | k | R | w | a | ||||||||||
Grafemização | A | C | R | O | I | S | ||||||||||
Designante | A | crois | ||||||||||
Artefacto | E | cruz | ||||||||||
Monossemia simples | S | cruz | ||||||||||
S | cruz | |||||||||||
Esmalte | H | De azul | ||||||||||
Número | H | 1 | uma | |||||||||
Figuração | H | cruz | cruz | |||||||||
Simetria | C | radial | ||||||||||
Orientação | C | imanência | ||||||||||
Centralidade | C | abismo | ||||||||||
Metonímia convergente | S | rei > coroa > Coroa de S. Eduardo > 4 florões | ||||||||||
S | rei > Eduardo > Coroa de S. Eduardo > 4 florões | |||||||||||
Aspecto | H | rei | florenciada | |||||||||
Localização | C | arrematam cada haste da cruz | ||||||||||
Orientação | C | o pé para o interior | ||||||||||
Simetria | C | = cruz | ||||||||||
Esmalte | H | em ouro | ||||||||||
Localização | H | acantonada de | ||||||||||
Número | H | quatro | ||||||||||
Figuração | H | merletas | ||||||||||
Conectivo | H | e | ||||||||||
Número | H | mais outra | ||||||||||
Localização | H | em ponta | ||||||||||
Número | H | todas | ||||||||||
Esmalte | H | do mesmo |
(próximo artigo nesta série II/VI)
![]() |
![]() |
![]() |
![]() |
![]() |
![]() |
![]() |
![]() |