Informamos o desenvolvimento de uma proposta semântica inédita, de acordo com a nossa aproximação metodológica da parofonia heráldica, para o timbre das armas dos Bettencourt (de Portugal): “um leão de negro, armado e lampassado de vermelho”.
Níveis semânticos: um ou mais.
Índice de discrição: médio.
Verbalização denominante: francês aportuguesado.
Verbalização designante: português.
Enredo heráldico: associado ao escudo.
Citação consequente: desconhecida ou inexistente.
Aparência falante: “bête” (francês » animal).
Traço aparente: escudo » figuração » leão.
Origem denominante: alóctone.
Credibilidade: boa.
Cifra: 68.
Veja a nossa metodologia.
Informamos o desenvolvimento de uma proposta semântica inédita, de acordo com a nossa aproximação metodológica da parofonia heráldica, para o timbre das armas dos Deslandes: “um dragão de perfil sainte de negro, sustendo nas garras duas balas de imprensa de sua cor”.
Níveis semânticos: quatro.
Índices de discrição: pequeno (I), nulo (II, III, IV).
Verbalizações denominantes: francês aportuguesado (I, II), português (III, IV).
Verbalizações designantes: português.
Enredo heráldico: dissociado do escudo.
Citação consequente: desconhecida ou inexistente.
Aparência falante: “saillant” (francês » sainte).
Traço aparente: timbre » atitude» sainte.
Origem denominante: alóctone.
Credibilidade: excelente.
Cifra: 112 (I), 0 (II), 0 (III), 0 (IV).
Veja a nossa metodologia.
Para além da denominação dada à residência em si, a parofonia usa demónimos ou gentílicos - nomeando os habitantes enquanto tais - uma forma habitual de mudar o referente noutra palavra que irá transformar-se em imagem. Os Reis de Jerusalém viviam na sua capital sendo por isso hierosolimitanos; seria razoável verificar se estariam incluídos, já depois da metonímia referente, nas armas que lhes correspondiam. É de lembrar que tínhamos exemplificado este comportamento parofónico noutros estudos: os demónimos Aquincenses (lat. budense), a identificar a capital da Hungria, e J'Wincestrin (ano. Eu winchestrense), em associação com a antiga capital da Inglaterra.
Após estas considerações chegámos à parofonia: Hierosolimitains (fra. hierosolimitanos) ~ Hirauts sols limitants (fra. arautos únicos limitantes). Um denominante extenso a gerar um designante de dimensão equivalente; não obstante, foi possível obter um índice de discrição k = 0,41. A combinação destas palavras é difícil de replicar por quaisquer outras e sugere que, ou se aceita a solução, ou não será possível encontrar um substituto viável através das mesmas premissas básicas.
O termo Hirauts (fra. arautos) é rico em acepções, definindo uma polissemia simples, capaz de produzir ao menos quatro traços heráldicos. Em representação dos Evangelistas é responsável pelas obras de João, Lucas, Marcos e Mateus, definindo portanto o número quatro. Destes derivamos as formas rectangulares, oportunistamente tomadas como quadrados a ajustarem-se aos cantões da cruz principal. Os documentos escritos daquela época usavam o pergaminho, daí que o esmalte prateado seja uma coloração própria aos livros, ao admitir-se a encadernação mais simples possível. Por fim, os Evangelhos adornavam-se frequentemente com cruzes e as cruzetas nos quadrados adaptam-se bem à sua nova condição: simples iluminuras das escrituras sagradas.
O comportamento monossémico habitual reaparece nos restantes componentes do designante. Sols (fra. únicos) denota quantidade e diz que não se consentirão mais cruzetas do que as necessárias à simbologia dos quatro Evangelhos. Limitants (fra. limitantes) declara que os quatro livros obedecem às instruções fornecidas antes por entur (fra. à volta) e dispõem-se em torno da cruz, como ditava “entre”, arredado por agora deste nível semântico. Nesta declaração do designante estava-se a pensar porventura em outras variantes das armas de Jerusalém a incluir um grande número de cruzetas, uma vez que aquelas também cercavam o móvel principal. Poderia ser usada a versão alternativa sols imitants (fra. únicos imitadores), redundância de imitants × cions. Mas a parofonia iria perder demasiada solidez, o fim do primeiro vocábulo funde-se com o início do segundo e soa como [z] em vez de permanecer mudo.
Seria ainda possível que os livros e respectivas cruzetas assumissem papéis mais próximos ao enredo exequial, e talhassem a pedra junto à cruz. Esta interpretação integraria ambos os níveis semânticos em um único tema, o epitáfio, ou simplesmente transformá-los-ia num novo artefacto, talvez um selo, se acompanharmos a sugestão de Mateus 27:66 “E eles foram pôr o sepulcro em segurança, selando a pedra e confiando-o à vigilância dos guardas”.
Ao seguir a trama do nosso enredo, poderia parecer que a importância do finado devesse impor uma conexão com hirauts. Quem eram os arautos de Jesus? Representariam necessariamente a repercussão dos seus ensinamentos; ele já não estava disponível para fazer-se ouvir. Parece-nos útil dividir as primeiras contiguidades em duas sucessões distintas. Embora “Evangelho” não apareça a concluir a primeira sequência, esta palavra ajudará a definir tudo o mais. Refira-se que, por concisão, nem sempre mencionamos algumas das transformações mais evidentes. A metonimização que se segue, a mais importante de todas, segue do arauto até a mensagem, convergindo para outra que parte de Jesus em direcção à Sua mensagem, porque “Evangelho” pode ser traduzido como um “anúncio de boas novas”:
arauto > mensageiro > mensagem
Jesus > pregador > Evangelho > mensagem
As quantidades dependem de duas metonímias simples independentes, reconhecendo a variedade dos quatro Evangelhos aceites e usando “únicos” como dissuasor de mais cruzetas:
Evangelho > Evangelistas > quatro
únicos > quatro ou menos
A forma deriva das propriedades geométricas elementares do objecto considerado:
Evangelho > livro > rectangular > quadrado
As cruzetas já existentes assumirão o carácter de desenhos simbólicos sob a forma de iluminuras:
Evangelho > pregador > Jesus > cruz(etas)
A cor dependerá do material usado na capa; poderia considerar desde uma encadernação despojada até a mais exuberante, embora apenas a primeira seja conservada:
Evangelho > livro > pergaminho > esbranquiçado
Evangelho > livro > marfim > esbranquiçado
Evangelho > livro > prata > prateada
Os livros dispõem-se sobre a cruz grega de modo a fazer surgir uma cruz potenteia aos olhos do observador. A razão pela qual os autores das armas optaram por esta obstrução parcial parece evidente: um esforço para destacar os Evangelhos, apesar da camuflagem cromática. A disposição final assegura a visibilidade de todos os quatro lados de cada um dos polígonos. Estes são brancos, a cor dos Evangelhos, sobre branco, imitando a pedra do Sepulcro e iriam desvanecer-se ao suster os cantões de uma cruz grega. A despeito desta engenhosa composição, talvez devido à influência cultural da cruz de Jerusalém, será difícil para a maior parte dos observadores detectar os quadrados de imediato.
Poderemos comparar a dita disposição e as armas da linhagem portuguesa dos Evangelho trazendo o seguinte: “de azul uma cruz de ouro cantonada por quatro besantes de prata figurados respectivamente de uma águia, um anjo, um boi e um leão”. Não se sabe se inspiraram-se nas armas de Jerusalém mas mostram ao menos que a ideia era de todo natural, ao combinarem-se os quatro livros dos Evangelhos e os quatro braços e cantões da cruz.
Para auxiliar a aplicação das nossas parofonias ao seu efeito visual objectivo, tivemos de alterar a descrição inicial do brasão (a). Os brasonamentos destinam-se a facilitar a reprodução heráldica através do seu texto mas nem sempre preservam as ideias originais. A manter a coerência, deveria constar a cruz grega em vez da cruz potenteia, mas isto complicaria ainda mais as coisas, assim, apenas adaptámos a conclusão da frase e substituímos “entre” por outras palavras mais apropriadas que reflectissem a melhor correspondência com a génese semântica de todos os traços heráldicos (b).
(a) De prata uma cruz potenteia de ouro entre quatro cruzetas do mesmo.
(b) De prata uma cruz potenteia de ouro, sustida nos cantões por quatro quadrados do primeiro, cada um carregado com uma cruzeta do segundo.
A disposição difere um pouco do que foi visto no último nível semântico, então descrita como: 1 1 & 1 1. Desta vez os quatro quadrados sustêm a cruz, querendo isso dizer que tocam com os seus lados nos espaços definidos pela cruz nos cantões. Não há qualquer abreviatura disponível para este género de arranjos de modo que imaginámos a notação: 1 | (1) | 1 & 1 | (1) | 1, que se lê: “um sustém só sustém um e um sustém só sustém um”. As barras verticais “|” designam cada sustentação através das peças individuais “1” (cada um dos quadrados) de uma outra peça no interior de um parênteses “(1)” indicando que esta é a mesma ocorrência da peça só (a cruz principal) onde quer que apareça repetida por conveniência da notação. Embora inútil na heráldica medieval, pensou-se na sua aplicação a outros fenómenos figurativos que compartilhem as mesmas ideias fundamentais, já em existência há muitas centenas de anos atrás.
Naturalmente poderíamos considerar o couro, o metal, a madeira ou quaisquer materiais adequados à protecção dos livros mas apenas incluímos aqueles que justificassem a cor branca ou prateada. A solução metálica parece menos viável porque insinua uma cruz em ouro, que iria contradizer as proposições do próximo nível semântico. O conjunto de escolhas disponíveis parece vasto e qualquer um ficaria curioso por saber a motivação de estenderem-se os livros sobre a cruz e de evitarem-se esmaltes contrastantes. A camuflagem terá sido intencional? É difícil dizer.
O brasão dos Reis de Chipre e Jerusalém, na segunda parte deste estudo, irá justificar-se durante os seis últimos níveis semânticos. Como esta representação é idêntica à da primeira parte, poderia acontecer que uma versão tenha-se “acomodado” à outra; a coloração dos Evangelhos é precisamente um dos poucos traços heráldicos a permitir a liberdade de escolha nestas armas. Como é óbvio, não sabemos quando surgiram ambas as versões e avançar a proposição de uma génese simultânea seria, no mínimo, prematuro. Contudo, apenas no que diz respeito às armas dos Reis de Jerusalém, as considerações cromáticas finais serão tratadas no próximo artigo que analisará as possíveis razões para a infracção à “lei dos contrastes”.
Reis de Jerusalém (V) | |||||||||||||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Classificação | ↓ | Descrição | |||||||||||||||
Armas de Domínio | R | Reis de Jerusalém | |||||||||||||||
Demónimo | M | Hierosolimitanos | |||||||||||||||
Língua de Conquista | V | Francês | |||||||||||||||
Denominante | A | Hierosolimitains | |||||||||||||||
Grafemização | A | H|I|E|R|O|S|O|L|I|M|I|T|A|I|N|S | |||||||||||||||
Fonemização denominante | A | je | R\ | o | z | o | l | i | m | i | t | Ẽ | |||||||||||||||
Emparelhamento | A | je | R\ | o | z | o | l | i | m | i | t | Ẽ | |||||||||||||||
A | i | R\ | o | s | o | l | i | m | i | t | Ã | ||||||||||||||||
Coeficiente de transposição | A | 0,0|0,0|0,0|0,0|0,0|0,0|0,0|0,0|0,0|0,0|0,0 | |||||||||||||||
Coeficiente de carácter | A | 1,0|0,0|0,0|0,5|0,0|0,0|0,0|0,0|0,0|0,0|0,5 | |||||||||||||||
Coeficiente de posição | A | 1,5|0,0|0,0|1,0|0,0|0,0|0,0|0,0|0,0|0,0|0,5 | |||||||||||||||
Parcelas | A | 1,5|0,0|0,0|0,5|0,0|0,0|0,0|0,0|0,0|0,0|0,3 | |||||||||||||||
Índice de discrição | A | k = 0,41 | |||||||||||||||
Fonemização designante | A | i | R\ | o | s | o | l | i | m | i | t | Ã | |||||||||||||||
Grafemização | A | H|I|R|A|U|T|S| |S|O|L|S| |L|I|M|I|T|A|N|T|S | |||||||||||||||
Designante | A | Hirauts sols limitants | |||||||||||||||
Notoriedade | E | arautos | |||||||||||||||
Metonímia convergente | S | arauto > mensageiro > mensagem | |||||||||||||||
S | Jesus > pregador > Evangelho > mensagem | ||||||||||||||||
Quantidade | E | únicos | |||||||||||||||
Geometria | E | limitantes | |||||||||||||||
Polissemia simples | S | quatro + quadrados + prata + cruzetas | |||||||||||||||
S | arautos | ||||||||||||||||
Monossemia composta | S | quatro | (entre) | |||||||||||||||
S | únicos | limitantes | ||||||||||||||||
Esmalte | H | De prata | |||||||||||||||
Número | H | uma | |||||||||||||||
Figuração | H | cruz | |||||||||||||||
Aspecto | H | potenteia | |||||||||||||||
Esmalte | H | de ouro | |||||||||||||||
Disposição | H | 1 | (1) | 1 & 1 | (1) | 1 | sustida | ||||||||||||||
Localização | H | define a cruz potenteia | nos cantões | ||||||||||||||
Conectivo | H | quadrados cruz | por | ||||||||||||||
Número | H | João, Lucas, Marcos, Mateus | quatro | ||||||||||||||
Metonímia simples | S | Evangelho > Evangelistas > quatro | |||||||||||||||
Metonímia simples | S | únicos > quatro ou menos | |||||||||||||||
Figuração | H | rectangular | quadrados | ||||||||||||||
Imanência | C | livro | |||||||||||||||
Encobrimento | C | cruz grega | |||||||||||||||
Orientação | C | imanência de livro | |||||||||||||||
Metonímia simples | S | Evangelho > livro > rectangular > quadrado | |||||||||||||||
Esmalte | H | esbranquiçado | do primeiro | ||||||||||||||
Imanência | C | pergaminho | |||||||||||||||
Contraste | C | ouro, prata | |||||||||||||||
Metonímia simples | S | Evangelho > livro > pergaminho > branco | |||||||||||||||
Número | H | 1 + 1 + 1 + 1 | cada um | ||||||||||||||
Localização | H | Evangelho | carregado | ||||||||||||||
Centralidade | C | diagonais do quadrado | |||||||||||||||
Conectivo | H | quadrados cruzetas | com | ||||||||||||||
Número | H | 1 | uma | ||||||||||||||
Metonímia simples | S | Evangelho > pregador > Jesus > cruz(eta) | |||||||||||||||
Figuração | H | cruzeta | |||||||||||||||
Esmalte | H | do segundo |
Uma vez que justificámos a presença das cruzetas, é tempo agora de determinar o motivo da sua configuração e aperfeiçoar a definição do número respectivo. As fontes mostram várias quantidades ao longo do tempo; é razoável supor que não existisse disponível para as parofonias nenhuma exigência rigorosa e de aplicação universal. Foi possível, contudo, fundamentar o arranjo e o número tomando-se como ponto de partida a Torre de David.
Acreditava-se que a Torre de Phasael estivesse na antiga cidadela do Rei David, designada em sua homenagem graças a esta confusão, como Torre de David. Godofredo de Bulhão usou a Torre como seu palácio e esta situação manteve-se até 1104, quando a Cúpula do Rochedo transformou-se em residência real; ambas apareceriam em peças numismáticas locais. A Cúpula foi dada à Ordem do Templo em 1119 e os reis mudaram-se então para um novo palácio, próximo à Torre de David.
Em conformidade, o emparelhamento denominante ~ designante estabelece-se com: en Tur (fra. em Torre) ~ entur (fra. à volta). Empregou-se a preposição en em lugar de dans la (Tur) ou en la (Tur) porque deveria referir um estado ou uma situação, em vez de uma localização dentro do mencionado edifício; exemplificamos ainda com en prison e dans la prison. De facto a Torre de David refere não só a torre como também a cidadela onde foi construído o terceiro palácio dos Reis de Jerusalém.
Poderá ter actuado acessoriamente como um tributo heráldico tardio a Godofredo, mas prevalece o conceito da residência num bairro chamado Torre de David onde viveu o primeiro Rei a usar estas armas. Assim, não podemos inferir desta representação heráldica da Torre que as armas foram concebidas durante a vida do Protector do Santo Sepulcro, a menos que documentação convincente apareça para provar o oposto. Mesmo depois de perder a sua condição de paço, a construção ainda aparece durante muito tempo nas moedas dos sucessores de Godofredo. O estudo do sexto nível reforçará os indícios desta relação.
As metonímias são necessárias em especial quando o significado do designante é visualmente inadequado ou a etapa de especificação é impotente para decidir entre as opções disponíveis. Aqui não ocorrem metonimizações; o conceito de “à volta” é mais do que suficiente para os objectivos do delineamento heráldico: temos apenas de considerar as peças de que dispomos. O designante entur refere portanto que algo, entendido como as cruzetas, deve circundar uma outra entidade, interpretada como a cruz. Não existem outras figurações presentes e o inverso seria inviável.
O termo “entre”, saído do escasso vocabulário do brasonamento, é desajeitado mas engenhoso, a declarar que as cruzetas devem ser colocadas a intermediar cada dois braços adjacentes na cruz. Deixa o restante da estrutura para os complementos heráldicos de modo a alcançarem-se os resultados visuais definitivos.
As considerações acima e o visível, embora aparente, contacto físico entre todos os cinco elementos não expõem, possivelmente, uma construção semântica primitiva mas a consequência de outras necessidades fundamentais que apenas surgirão explícitas no quinto nível. Já sabemos que as primeiras versões conhecidas das cruzetas não tocam a cruz maior, ao invés disso estão espalhados ordenadamente pelos cantões. Nesta fase pode-se constatar que as cruzetas estão adjacentes à cruz mas uma vez concluído o desenho do brasão o seu aspecto vai alterar-se: as quatro figurações menores estarão situadas no meio dos cantões de uma cruz potenteia.
Referimos ainda outras complementações mais evidentes: o preenchimento será regulado pela dimensão das cruzetas a pelo espaço deixado livre nos cantões; quanto à simetria dependerá das diagonais que passam pela intersecção dos braços centrais e, simultaneamente, da própria cruz. O centro do escudo regrará a centralidade do grupo de cruzetas como já fez para a cruz, organizando uma espécie de quadrado imaginário que passa através dela.
Devemos distinguir agora três circunstâncias distintas para as características complementares das cruzetas. A primeira já foi abordada no último nível semântico onde a orientação e a simetria referiam-se aos componentes próprios a cada cruzeta. A segunda trata da sua situação isolada com respeito ao espaço envolvente. Uma terceira considera como todas as cruzetas irão relacionar-se em conjunto com os outros elementos e com o escudo. Há uma quarta situação, a incluir um componente suplementar camuflado, que será conhecida posteriormente.
Para mostrar com maior clareza a estrutura semântica seria preciso distinguir a posição e a disposição ao brasonar, como se mostra na tabela abaixo. O problema é que a disposição está incorporada no sentido de “entre” enquanto que, ao mesmo tempo, os quatro elementos menores são obstruídos pela peça principal. O brasonamento não permitirá descrever a situação com o termo “dois e dois”, previsto para contiguidades repetitivas. Em consequência, imaginou-se uma descrição alternativa que pudesse adaptar-se a esta circunstância pela junção de um “+” ou “mais” sempre que exista um espacejamento mais extenso ou outros elementos inseridos entre peças idênticas alinhadas na horizontal. Daí, o arranjo que se considera actualmente seria descrito abreviadamente como “um mais um e um mais um” ou “1 + 1 e 1 + 1”.
Vimos que até agora não houve necessidade de substanciar um número preciso de cruzetas no brasão e, de facto, elas surgem de modo distinto nos documentos mais antigos. Como ignoramos o aspecto exacto da primeira de todas as descrições das armas de Jerusalém, é possível que um entendimento posterior atribuísse algum significado àquelas quantidades dissimilares, ou mesmo conformassem-se com um arranjo coerente ao incluir um referente adicional, ou até deixando tudo à mercê do efeito de avaliações pragmáticas que não interferissem parofonicamente com os traços heráldicos correspondentes.
Entretanto, o limite inferior para a quantidade de cruzetas foi alargado. Enquanto que cions garantia ao menos dois elementos, entur acrescentará mais duas unidades a esta restrição. A cruz possui quatro reentrâncias entre os pares de braços adjacentes e cada uma deve estar provida de uma cruzeta ao menos; essas quatro são o mínimo suficiente para preencher o perímetro. Atingimos assim o número visível na representação clássica que estamos a estudar e talvez sejamos tentados a abandonar outras quantidades por injustificáveis.
No começo, a noção de “rebentos” desencadeou o aparecimento de outras versões para as armas de Jerusalém, com catorze ou quinze cruzetas. Poderíamos explicá-los como os três Evangelistas ulteriores ao enredo heráldico mais os doze Apóstolos, incluindo-se aí João e Matias, ou contando-se apenas onze Discípulos à data da crucifixão no caso das catorze cruzetas. Ademais, não seria difícil de imaginar as cruzetas dispostas à volta da cruz do Mestre como seguidores a ouvir as suas palavras, mas já assumiu-se que Ele estava definido no enredo visual como um cadáver. Talvez a ideia inicial não fosse tão específica e contasse as ditas quantidades indistintamente como uma multidão, a Igreja.
A reunião dos conceitos formais gerados pelas quatro parofonias iniciais Ézéchias ~ Exequies, Jérusalem ~ Je ruse la haine, Sion ~ Cions e en Tur ~ entur está presente na maior parte das variedades conhecidas das armas de Jerusalém: uma cruz rodeada por cruzes menores. Os níveis que se seguem terão sido um acréscimo eventual e posterior ou constituiriam uma disposição alternativa dos elementos, a desconsiderar algumas das suas características anteriormente definidas. Continuaremos com a justificação da existência estrita de apenas quatro cruzetas e a conformação simultânea da típica cruz potenteia que todos conhecemos.
Reis de Jerusalém (IV) | ||||||||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Classificação | ↓ | Descrição | ||||||||||
Armas de Domínio | R | Reis de Jerusalém | ||||||||||
Residência | M | em Torre (de David) | ||||||||||
Língua de Conquista | V | Francês | ||||||||||
Denominante | A | en Tur | ||||||||||
Grafemização | A | E | N | | T | U | R | ||||||||||
Fonemização denominante | A | ã | t | u | R\ | ||||||||||
Emparelhamento | A | ã | t | u | R\ | ||||||||||
A | ã | t | u | R\ | |||||||||||
Coeficiente de transposição | A | 0,0 |0,0 | 0,0 | 0,0 | ||||||||||
Coeficiente de carácter | A | 0,0 |0,0 | 0,0 | 0,0 | ||||||||||
Coeficiente de posição | A | 0,0 |0,0 | 0,0 | 0,0 | ||||||||||
Parcelas | A | 0,0 |0,0 | 0,0 | 0,0 | ||||||||||
Índice de discrição | A | k = 0,0 | ||||||||||
Fonemização designante | A | ã | t | u | R\ | ||||||||||
Grafemização | A | E | N | T | U | R | ||||||||||
Designante | A | entur | ||||||||||
Geometria | E | à volta | ||||||||||
Monossemia simples | S | entre | ||||||||||
S | entur | |||||||||||
Esmalte | H | De prata | ||||||||||
Número | H | uma | ||||||||||
Figuração | H | cruz | ||||||||||
Aspecto | H | potenteia | ||||||||||
Esmalte | H | de ouro | ||||||||||
Localização | H | cantões da cruz | entre | |||||||||
Simetria | C | diagonais radiais | ||||||||||
Preenchimento | C | área dos cantões | ||||||||||
Disposição | H | à volta | (1 + 1 e 1 + 1) | |||||||||
Simetria | C | cruz | ||||||||||
Centralidade | C | abismo | ||||||||||
Número | H | quatro | ||||||||||
Figuração | H | cruzetas | ||||||||||
Esmalte | H | do mesmo |
(próximo artigo nesta série V/XII)
O par homofónico Sion (fra. Sião) ~ Cions (fra. rebentos) está entre as melhores parofonias encontradas nas Armas de Jerusalém. Foi perturbador achar uma conexão tão óbvia ao Reino, traduzindo-se em componentes visuais também evidentes, sem que nunca esta tenha chamado a atenção dos heraldistas de modo a considerarem-se as armas como falantes. Talvez não estejamos a ser razoáveis e alguém algures terá notado esta associação.
Não sabíamos se a metonímia do referente Sion, contígua ao Rei de Jerusalém, referia-se a Sião, ou seja à cidade de Jerusalém, ou ao Monte Sião ao sul da cidadela. Havia alguma confusão sobre a verdadeira localização daquele Monte e o seu relacionamento com o paço real dos cruzados, reflectindo-se na pesquisa do sentido da palavra usada para estabelecer os componentes heráldicos.
Assim que a resposta foi encontrada, foi necessário aumentar o número de níveis semânticos de dez para doze, acrescentando-se a residência real, ficando agora claro para nós que o denominante Sion representa a cidade de Jerusalém. Voltando ao denominante anterior Jérusalem, o qual também ignorávamos se estava ligado ao Reino ou à cidade, sabemos agora com segurança que se trata de uma metonímia referente do tipo territorial.
Uma cruz grega organizaria melhor a simetria e é a forma mais simples possível no conjunto daquela classe de figurações. As cruzetas partilham a forma com a figuração principal mas numa escala diminuta, quase num padrão fractal; permitiriam a acomodação das suas cópias em qualquer um dos quatro cantões. Em contraste, uma cruz latina seria capaz de acolher perfeitamente bem os seus clones nos cantões inferiores mais alongados mas não nos cantões quadrados superiores, ou vice-versa, dependendo do seu tamanho relativo.
As diagonais de cada cantão ajudam a centrar a localização de cada cruzeta, mas este aspecto complementar da heráldica não é o motivo principal por detrás desta disposição, que será completamente justificada no próximo artigo. Relativamente à mesma questão enfatizamos o facto fundamental de que uma cruzeta grega (G) permanece a mesma a cada rotação de 90º em torno do seu centro ou reflectida através da direcção das hastes ou através dos eixos bissectores, preservando a invariância do conjunto de pontos e definindo um grupo de oito simetrias no plano. Uma cruzeta latina (L) permanece a mesma para a permutação identidade e para a reflexão através das hastes verticais. Consequentemente, apenas o primeiro móvel é capaz de assegurar um arranjo simétrico harmonioso de vários elementos, como se verá no artigo a publicar em seguida.
G L - rotação horária de 0º (identidade)
G - rotação horária de 90º
G - rotação horária de 180º
G - rotação horária de 270º
G - reflexão através dos braços horizontais
G L - reflexão através dos braços verticais
G - reflexão através do eixo a 45º
G - reflexão através do eixo a 315º
Contudo, ainda se admite qualquer tipo de cruz nesta conjuntura, desde que todas compartilhem a mesma forma e mantenham a simetria radial. Como em qualquer acto replicável, devemos estar preparados para aceitar que algumas representações serão distintas das intenções primitivas e não seguirão as determinações parofónicas ali estabelecidas. Além disso, não estamos certos se o armigerado alguma vez conheceria estas regras parofónicas. Emitir moedas ou selos com base em descrições como “de prata uma cruz potenteia de ouro entre quatro cruzetas do mesmo” poderia ocasionar equívocos infelizes, arruinando discretamente partes cruciais do significado.
Há um exemplo heráldico similar e curioso onde está envolvida a coincidência de formas mas na direcção inversa, o sentido aparece a partir das imagens no brasão como desenvolvimento pragmático. Para as armas de Jerusalém deduzimos a similaridade partindo da parofonia. No caso do terceiro quartel das armas modernas de Aragão, mostrando quatro cabeças de mouros, acreditamos que a semelhança das figurações foi a razão principal para descreverem-se os naturais de Aragão como maños (ara. irmãos). Outros exemplos de símbolos territoriais usados em alcunhas estão disponíveis na nossa dissertação em Pragmática e Justificações.
Considerando-se a flexão plural cions, esta indica mais de um elemento, enquanto que, por exemplo, a tradução inglesa offspring já não o faz. Trata-se de um outro tipo de problema que devemos enfrentar. O significado parofónico intencional será certamente único, mas não o método escolhido para transmiti-lo. Além do mais sabemos que, mesmo para a mesma língua, a passagem dos anos dotará a maior parte das palavras com distintas formas lexicais ou significados. Quando o investigador aplica uma língua inteiramente distinta para tentar reproduzir as condições iniciais nem sempre é viável manter todas as subtilezas da semântica correspondente.
Note-se que o designante cions não especifica aonde devemos posicionar as cruzetas. Apenas sabemos que não estão isoladas, devido ao sufixo, e todas serão semelhantes, se bem que menores do que a cruz central. Nada de mais específico é dito sobre a sua quantidade e onde jazerão no que diz respeito à figuração principal e ao campo. Apesar de quaisquer argumentos em contrário, uma interpretação correcta poderia muito bem mostrar apenas duas cruzetas por cima da cruz, pelo menos como as coisas se apresentam neste momento. Por certo, se nada mais existisse na parofonia que nos auxiliasse a compor as figurações, outras normas heráldicas complementares ajudar-nos-iam a obter uma resultado adequado, talvez próximo à representação vista ao alto desta página.
Por fim, o termo cion é um substantivo mas não assegura nada de concreto que possa materializar-se sobre o escudo que temos diante de nós, devido ao carácter simbólico do seu análogo de maior dimensão. A acepção usual que sobreviveu em francês, scion, implica apenas a ideia vegetal de um rebento enquanto que a denotação genealógica de scion em inglês como herdeiro ou descendente, embora tardia, preserva melhor as raízes do seu significado primitivo em francês, similar ao português.
Podemos deduzir duas metonimizações de tudo o que se disse. As quantidades ainda não estão inteiramente envolvidas por agora, já que apenas podemos justificar duas escassas cruzetas. Veja-se que não ocorre aqui uma imitação, traço heráldico complementar desprovido da correspondência parofónica a montante; um bom exemplo deste fenómeno é a cruz de pé apontado que aparece nas armas de fantasia de Jerusalém no Zürcher Wappenrolle.
Poderia ademais ser considerada uma oposição, definida por “grande × pequeno”, mas sem qualquer consequência nos traços heráldicos, que derivam o tamanho relativo a partir do designante. Tudo o que se pode definir no presente nível é a motivação da emergência das cruzetas no que se refere à forma e dimensão desde cions através de um par de metonímias simples:
rebentos > filhos > irmãos > parecidos
rebentos > filhos > pequenos
O relacionamento com as “exéquias” parece ter desaparecido por agora, mas os próximos níveis mostrarão que a cruzetas estão integradas num significado mais abrangente, que concluirá com a viabilização completa do cenário previsto para estas armas. Há uma passagem nos Evangelhos que poderia dar apoio a um papel prematuro das cruzetas como componente do enredo:
1 Coríntios 12:12,27 “De facto, o corpo é um só, mas tem muitos membros; e no entanto, apesar de serem muitos, todos os membros do corpo formam um só corpo. Assim acontece também com Cristo ... Ora, vós sois o corpo de Cristo e sois Seus membros, cada um no seu lugar”
Não se introduz nada de radicalmente novo no aspecto formal, apenas consideram-se as cruzetas como extensões do corpo de Jesus, já representado pela peça principal. Provavelmente este sentido estabelece-se pela adjacência das figurações mais pequenas à personificação de Cristo como cruz. Em qualquer caso não consideramos este arranjo como determinante; outras representações aceitáveis e consistentes das armas de Jerusalém incluem cruzetas separadas.
Não devemos ainda concluir que as cruzetas pertençam ao epitáfio gravado sobre a lápide juntamente com a cruz. Não são apenas desiguais em tamanho, número e posição mas também equivalem a um outro artefacto feito de outro material. De resto, a cruz e as cruzetas não dispõem dos seus esmaltes, estes surgirão apenas no último nível referente a Jerusalém. O que importa assinalar é que já se encontrou a incorporação adequada para a primeira, a cruz actua como um epitáfio sobre uma sepultura, enquanto que as cruzetas preencherão as lacunas do seu sentido por inteiro no sexto nível. De momento são cruzes simbólicas que repetem o segundo nível semântico sem qualquer conexão visual óbvia ao enredo exequial.
Reis de Jerusalém (III) | ||||||||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Classificação | ↓ | Descrição | ||||||||||
Armas de Domínio | R | Reis de Jerusalém | ||||||||||
Capital | M | Jerusalém | ||||||||||
Língua de Conquista | V | Francês | ||||||||||
Denominante | A | Sion | ||||||||||
Grafemização | A | S | I | O | N | ||||||||||
Fonemização denominante | A | s | j | Õ | ||||||||||
Emparelhamento | A | s | j | Õ | ||||||||||
A | s | j | Õ | |||||||||||
Coeficiente de transposição | A | 0,0 | 0,0 | 0,0 | ||||||||||
Coeficiente de carácter | A | 0,0 | 0,0 | 0,0 | ||||||||||
Coeficiente de posição | A | 0,0 | 0,0 | 0,0 | ||||||||||
Parcelas | A | 0,0 | 0,0 | 0,0 | ||||||||||
Índice de discrição | A | k = 0,0 | ||||||||||
Fonemização designante | A | s | j | Õ | ||||||||||
Grafemização | A | C | I | | O | N | S | ||||||||||
Designante | A | Cions | ||||||||||
Humano | E | rebentos | ||||||||||
Monossemia simples | S | cruzetas | ||||||||||
S | cions | |||||||||||
Esmalte | H | De prata | ||||||||||
Número | H | uma | ||||||||||
Figuração | H | cruz | ||||||||||
Aspecto | H | potenteia | ||||||||||
Esmalte | H | de ouro | ||||||||||
Localização | H | entre | ||||||||||
Número | H | quatro | ||||||||||
Metonímia simples | S | rebentos > filhos > irmãos > parecidos | ||||||||||
Metonímia simples | S | rebentos > crianças > pequenas | ||||||||||
Figuração | H | rebentos | cruzetas | |||||||||
Simetria | C | radial | ||||||||||
Orientação | C | imanência | ||||||||||
Esmalte | H | do mesmo |
(próximo artigo nesta série IV/XII)
A representação escolhida para o segundo nível semântico - a cruz principal - provavelmente foi o primeiro elemento a aparecer nestas armas, não uma cruz potenteia mas uma cruz simples, fosse ela firmada ou solta. Na verdade não sabemos muito sobre sinais similares que se usassem numa alusão cristã à Cidade Santa em época proto-heráldica. É bem possível que cruzes estivessem incluídas nessa ilustração eventual mas duvidamos que a parofonia pudesse desempenhar ali qualquer papel, pelo menos na forma descrita abaixo. Talvez Jesus e os quatro Evangelistas ou as Cinco Chagas do Senhor pudessem explicá-las com outra fundamentação; de facto são apontadas frequentemente como motivos credíveis para as armas que estudamos.
O significado constrói-se a partir da parofonia: Jérusalem (fra. Jerusalém) ~ Je ruse la haine (fra. Eu afasto o ódio). A denotação de ruser/reuser mudou ao longo dos anos. Hoje significa “iludir” ou “enganar” mas naquela época e ambientação, ruse deveria ser interpretado como “repilo”, “rechaço” ou “afasto”. Ademais, a intransitividade de ruse não permite, tanto quanto saibamos, Je ruse a la haine e o carácter aspirado do “h” inicial, impede Je ruse l'haine.
A etapa de especificação (E) define uma nova tipologia. Desta vez não se apresentam substantivos, acções, quantidades ou qualidades isoladas mas uma frase a traduzir-se visualmente como um todo. Funciona como uma citação ou, tendo em conta a ambientação exequial já estabelecida em Ézéchias ~ Exequies, como um epitáfio. De momento classificaremos este género de especificação em “outros”, aguardando por mais ocorrências que fundamentem uma classe própria.
Finalmente estamos em condições de apresentar um exemplo da transposição de fonemas durante a acomodação (A); inclui-se no emparelhamento de [ZeryzalEm] ~ [Z@R\yzlaEn]. Trata-se de uma importantíssima ferramenta parofónica, dando liberdade ao autor de usar apenas sons idênticos ou similares que trocam de lugar no vocábulo sempre que estritamente necessário. Note-se que para fins de cálculo procederemos de início à transposição [al] ~ [la] com a sua penalidade associada, o coeficiente de transposição t = 1. Aplicamos depois todas as penalizações restantes, ou seja, as modificações qualitativas nos fonemas, com os seus coeficientes de carácter c, de acordo com os respectivos posicionamentos no interior da palavra, medidos pelos coeficientes de posição p.
As discrepâncias entre os fonemas [e ~ @], [r ~ R\] e [m ~ n] são relativamente ligeiras e talvez não possam ser justificadas com o índice de discrição resultante, que se eleva a k = 0,50. Enquanto a modelização não substituir esta medida por outra mais eficaz devemos sujeitar-nos a tais desvios. O estabelecimento das penalidades é grosseiro e quase arbitrário mas a sua associação propicia um efeito dicotómico conveniente para auxiliar a nossa tarefa.
Preparamo-nos agora para responder à pergunta - Quem é o defunto? Como todo o ser humano eventualmente morre, buscaremos alguém cuja morte tenha sido relevante para a história ou para a tradição, de tal modo que pudesse ser lembrado pelos cruzados ou por quem quer que contemplasse as armas dos Reis de Jerusalém. Carece ainda recordar aqui o fenómeno da sublimação, onde só a representação de maior estatuto aufere o significado. Isto acontece com o vago felino de Katzenelnbogen, tempestivamente transformado num feroz leão. Procuramos, portanto, uma individualidade assinalável.
Jerusalém deve estar envolvida de algum modo nas “exéquias” e a referida personalidade não opor-se-á ao lado cristão, já que inexistem motivações visuais no brasão que suponham o contrário. Poderá parecer uma incongruência heráldica mas exemplificamos com as armas de Portugal: os escudetes dispostos em cruz são entendidos de hábito como cinco inimigos, reis Mouros derrotados por D. Afonso Henriques. Resta dizer que o resultado visual deste segundo nível necessita combinar satisfatoriamente com o primeiro nível: um túmulo em pedra.
Em relação ao nível semântico actual, Je (fra. Eu) poderia personificar a pessoa falecida ou o próprio escudo a título de individualidade falante, como o que se viu em Danubius ~ Da nubis. É bem claro para nós que a segunda opção é inviável aqui. Daí que a frase em questão representasse, no pior dos casos, alguém que se soubesse ter reproduzido em vida o significado de Je ruse la haine. Mais adequadamente ao nosso enredo, a expressão precisa estar associada com a sua sepultura por meio de um epitáfio irreal mas plausível, a resumir os incidentes de toda uma existência.
Observamos uma oposição implícita em Je ruse la haine onde o ódio é confrontado por algo que se interpreta como o seu oposto, o amor, que por sua vez incorpora-se em alguém ainda desconhecido. Contudo, esta oposição não surge explicitamente nos traços heráldicos (H). Como resultado, o conjunto de associações {exéquias, Jerusalém, cristão, eminente, sepultura, epitáfio, oposto ao ódio} produziria apenas uma pessoa: Jesus Cristo. De facto, os Evangelhos sublinham a importância deste conceito em Jo 13, 34: “Dou-vos um mandamento novo: amai-vos uns aos outros. Assim como Eu vos amei, também vós deveis amar-vos uns aos outros”.
Observe-se que não foi necessário aplicar o forte poder identificativo da cruz em todo o raciocínio. Por seu lado, os autores das armas não tinham qualquer obrigação heráldica de adoptarem uma cruz na sua simbologia, tratando-se de uma mera consequência parofónica. Isto não implica a sua dispensa como indício por nós interpretantes, que dependemos do caminho inverso ao da criação. Entretanto, a nossa abordagem de cariz oportunamente didáctico servirá para mais situações.
As metonímias emergem para admitir a conversão da nossa frase inspiradora numa cruz. Não é tão simples como possa parecer, a despeito de todos os argumentos que já avançámos. Em lugar da confusa reunião de conceitos vista mais acima, necessitamos agora de uma sequência ordenada de ideias que irão fixar a estrutura de sematização (S) de modo seguro. Apenas termos inequívocos, como o numeral gerado por Seint ~ Cinc, estão habilitados a prover uma transcrição imediata em traços heráldicos; não é o caso aqui.
Jesus era visto como o Cordeiro de Deus sem pecado, sacrificado na cruz pelo amor dos homens. Encontramos a convergência numa cruz heráldica através da composição de duas metonímias que incluem as ideias opostas de amor e ódio, respectivamente implícito e explícito em Je ruse la haine:
Jesus > amor > morrer > sacrifício > cruz
pecado > ódio > matar > punição > cruz
Uma outra metonímia composta e convergente irá relacionar-se com o primeiro nível semântico, estabelecendo uma ligação entre as duas etapas. Principia com a temática anterior, as exéquias e o túmulo, ocupando-se então com a substituição do designante na forma de um epitáfio - Je ruse la haine - por fim simbolizado pela cruz; alegoria corrente nas lápides cristãs. Em simultâneo vemos a cruz contígua a Jesus, uma associação cultural indiscutível. Pareceria quase redundante referi-lo mas devemos consciencializar-nos de que esta metonímia é específica à representação do próprio Cristo nas armas de Jerusalém e não uma alusão genérica ao túmulo de um cristão:
exéquias > túmulo > epitáfio > cruz
Jesus > cruz
Abordaremos agora as representatividades complementares destes símbolos e dos seus supostos fundamentos. As acepções encontradas entram em conflito com a luta dos cruzados? Primeiro de tudo, não sabemos exactamente quando as armas nasceram, de modo que pudéssemos detectar todas as fontes específicas de inspiração. Mas é verdade que a guerra, defensiva ou agressiva, acompanhada pela violência, foi uma circunstância constante na efémera vida do Reino. Como poderiam os cruzados reconciliar isto com os ensinamentos pacíficos do Nazareno?
Os aspectos incidentalmente religiosos desta génese heráldica não nos podem desorientar; eles representam os responsáveis políticos de Jerusalém mas por mero acaso. Para mais, a guerra medieval era amplamente aceite e entendida como uma necessidade e mesmo um dever para os cristãos, incluindo-se aí a Santa Sé. Neste contexto, ruse (fra. afasto) poderia ser concebido ainda como o combate ou o banimento dos inimigos dos Reis de Jerusalém, hostis portanto a qualquer cristão. O conflito com a nossa proposta para a expressão parofónica apenas mostra que a concepção e a evolução do significado são duas coisas distintas, nem sempre permeáveis entre si em todos os aspectos.
Além disso, o verbo está no tempo presente - Eu afasto o ódio - conotando a ressurreição e a vida eterna de Cristo. Também não contradiz a nossa afirmação anterior referente à manutenção da Sua condição de morto no enredo heráldico. Referíamo-nos então à directa sugestão parofónica de todos os traços visuais. Obviamente, uma infinidade de conotações e desenvolvimentos semânticos são possíveis a partir dali. Mas alguns deles, que nos sentimos obrigados a citar, são mais adequados e imediatos do que os demais.
Empregamos uma cruz grega em vez de uma cruz firmada na nossa exemplificação figurativa porque é a melhor maneira de mostrar a evolução conjectural dos sinais exibidos pelos Reis de Jerusalém. À partida não há nenhuma razão especial para acreditar que a cruz firmada pudesse ter um significado distinto da cruz grega. A primeira aparece efectivamente em armoriais durante um período em que as composições geométricas eram preferidas pela heráldica. A cruz firmada é mais simples e seria por certo uma escolha permanente se outros constituintes não afectassem a seguir a sua forma. Esta peça fundamental deverá ter actuado como um símbolo de Cristo e não como um artefacto, manifestamente durante os primeiros anos. Conheceremos ainda um segundo entendimento da cruz também usada pelos Reis de Chipre, que favoreceram uma figuração solta.
Inspirações viáveis e inclusivas de um tipo diferente poderiam ser a cópia da Vera Cruz desenhada sob a forma de uma cruz latina ou a imitar a tampa de uma sepultura. Esta última seria quase necessariamente afectada pela lápide do Santo Sepulcro, que já se dizia estar em más condições já no século XI. Presumimos que a laje original foi substituída ou oculta na sequência das modificações realizadas na edícula.
Os traços complementares (C) governam as características que não se justificam por quaisquer proposições semânticas. Para a cruz principal vemos a incidência ordinária da centralidade no abismo bem como a orientação horizontal e vertical ou a simetria radial que são imanências da cruz em grau diverso. A largura dos braços também sofre o efeito de traços complementares. Além da natural conservação da espessura ao longo das quatro hastes, as proporções relativas devem ser suficientes para admitir, por exemplo, algumas cruzetas no espaço restante. Haverá mais comentários a fazer sobre a interferência mútua dos níveis semânticos, mas serão tratados noutros artigos mais adequados a cada caso.
Reis de Jerusalém (II) | ||||||||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Classificação | ↓ | Descrição | ||||||||||
Armas de Domínio | R | Reis de Jerusalém | ||||||||||
Territorial | M | Jerusalém | ||||||||||
Língua de Conquista | V | Francês | ||||||||||
Denominante | A | Jérusalem | ||||||||||
Grafemização | A | J | E | R | U | S | A | L | E | M | ||||||||||
Fonemização denominante | A | Z | e | r | y | z | a | l | E | m | ||||||||||
Emparelhamento | A | Z | e | r | y | z | a | l | E | m | ||||||||||
A | Z | @ | R\ | y | z | l | a | E | n | |||||||||||
Coeficiente de transposição | A | 0,0 | 0,0 | 0,0 | 0,0 | 0,0 | 1,0 | 0,0 | 0,0 | 0,0 | ||||||||||
Coeficiente de carácter | A | 0,0 | 0,5 | 0,5 | 0,0 | 0,0 | 0,0 | 0,0 | 0,0 | 0,5 | ||||||||||
Coeficiente de posição | A | 0,0 | 1,0 | 1,0 | 0,0 | 0,0 | 0,0 | 0,0 | 0,0 | 0,5 | ||||||||||
Parcelas | A | 0,0 | 0,5 | 0,5 | 0,0 | 0,0 | 0,0 | 0,0 | 0,0 | 0,3 | ||||||||||
Índice de discrição | A | k = 0,50 | ||||||||||
Fonemização designante | A | Z | @ | R\ | y | z | l | a | E | n | ||||||||||
Grafemização | A | J | E | | R | U | S | E | | L | A | | H | A | I | N | E | ||||||||||
Designante | A | je ruse la haine | ||||||||||
Outros | E | Eu afasto o ódio | ||||||||||
Monossemia simples | S | cruz | ||||||||||
S | je ruse la haine | |||||||||||
Esmalte | H | De prata | ||||||||||
Número | H | 1 | uma | |||||||||
Metonímia convergente | S | exéquias > túmulo > epitáfio > cruz | ||||||||||
S | Jesus > cruz | |||||||||||
Metonímia convergente | S | Jesus > amor > morrer > sacrifício > cruz | ||||||||||
S | pecado > ódio > matar > punição > cruz | |||||||||||
Figuração | H | Jesus | cruz | |||||||||
Simetria | C | radial | ||||||||||
Orientação | C | imanência | ||||||||||
Centralidade | C | abismo | ||||||||||
Aspecto | H | potenteia | ||||||||||
Esmalte | H | de ouro | ||||||||||
Localização | H | entre | ||||||||||
Número | H | quatro | ||||||||||
Figuração | H | cruzetas | ||||||||||
Esmalte | H | do mesmo |
(próximo artigo nesta série III/XII)
Após termos efectuado cinco análises exemplificadoras da heráldica de fantasia, começamos agora um novo capítulo ao introduzir estas armas de domínio do Reino medieval de Jerusalém. Por armas de domínio entendemos quaisquer armas heráldicas que representem a propriedade pessoal e transmissível de um território secular. Acomoda senhorios, condados, ducados, reinos e impérios entre outros do mesmo género.
Para nossa surpresa encontrámos doze níveis semânticos, os quais parecem actuar diversamente de acordo com a apreciação primitiva de cada variante. Mais do que a quantidade, o que nos causa admiração é a simplicidade formal capaz de produzir um resultado semântico tão fértil. Além disso, não só os traços heráldicos podem ser explicados de mais de uma maneira, como também sugerirão que estes níveis organizaram-se em diversa medida ao longo do tempo, a confiar nas fontes. Esta densificação da estrutura do significado será difícil de ultrapassar no futuro por outro brasão.
Embora incorporando duas referências dissimilares - uma para Jerusalém e outra para Chipre - preferimos tratá-las como uma representação única e manter o título convencional, mencionando as armas como correspondentes apenas aos Reis de Jerusalém. Aparentemente, a mudança foi gradual e conservou a maior parte dos valores semânticos iniciais.
Aparecem logo em meados do século XIII na Historia Anglorum de Mateus de Paris, onde se vê uma cruz em prata firmada sobre um campo de ouro, lembrando a morte de João de Brienne, Rei Consorte de Jerusalém, em 1237[1]. A Rainha Maria faleceu em 1212 e João deixa a coroa para a filha de ambos, Isabella, e vai reger o Império Latino. O autor também admite para aquele Rei os mesmos esmaltes e cruz porém esta cantonada por quatro, quatro, três e três cruzetas[2][3]. A inconsistência cromática das delgadas cruzetas castanhas pode ser explicada pela necessidade de fazê-las em pequena dimensão, usando para isso a mesma pena que se utilizou para delinear os escudos e outras formas. Ademais, o uso de metal prateado no castelo de Castela na mesma página levanta a suspeita de alguma negligência no uso dos esmaltes.
Outros armoriais apresentam variações sobre o tema principal, o número de cruzetas varia e a cruz central, de formas variadas, podendo permutar os esmaltes com o campo. De modo a simplificar a organização deste artigo serão adoptadas as armas tradicionais dos Reis de Jerusalém: de prata uma cruz potenteia de ouro cantonada de quatro cruzetas do mesmo. Parece ser a interpretação que dá melhor uso à maior parte dos níveis semânticos em discussão. Outras composições podem ser encarados como versões incompletas, tratadas no corpo do texto sempre que oportuno.
Será possível tomar como verdadeiras estas armas do Reino de Jerusalém e confiar inteiramente nas fontes, até quando secundárias ou terciárias? Não é esta a nossa tarefa; apenas propomos soluções para a origem parofónica das formas e cores observadas nos brasões. Veremos contudo que até composições muito simples poderão acomodar-se confortavelmente no enredo heráldico que explorámos.
A numismática poderia parecer mais ilustrativa, já que se conhecem moedas de reinados mais antigos em Jerusalém, com a vantagem de uma identificação contemporânea confiável. Infelizmente estes hábitos pictóricos parecem ser distintos dos usados na heráldica. Mas isto não implicará que a parofonia esteja ausente, uma vez que é mesmo atestada nas primeiras cunhagens feitas pelo homem. Sabemos que não foi uma prática sistemática, coexistiu com inscrições, monogramas, efígies, imagens arquitectónicas e outros símbolos. Os seus referentes e metonímias provavelmente serão distintos, daí que este problema necessite de uma verificação aprofundada para melhor entendimento.
No que se refere ao nosso tema, aparecem no reverso das moedas a Torre de David e a Igreja do Santo Sepulcro, enquanto uma cruz, talvez de uso genérico e indiferenciado, é vista no obverso[4]. Por sua vez. os reis de Chipre e Jerusalém usaram o leão de Lusignan ou a cruz potenteia. Tentaremos considerar atempadamente como a heráldica e a numismática poderão convergir e auxiliar a nossa investigação.
O francês seria uma escolha óbvia como língua de conquista para a fase de verbalização. A maior parte dos cruzados era francófona e muitos dos governantes que estabeleceram o seu poder na Terra Santa pertenciam à mesma esfera linguística. Mais uma vez, o Latim poderia ser hipoteticamente considerado como instrumento geral de verbalização, mas não se encontraram parofonias razoavelmente adaptadas aos traços heráldicos disponíveis.
Começamos o nosso trabalho com um hidrónimo artificial, construído por uma antigo Rei de Judá: o Túnel de Ezequias. Transfere água da Fonte de Gião para a Piscina de Siloé, atravessando a parte mais antiga da cidade por baixo da terra, já que não existem quaisquer rios ali [5]. Produz-se assim a parofonia Ézéchias (fra. Ezequias) ~ Exequies (fra. exéquias) bizarra associação de uma fonte de vida aos rituais fúnebres.
Relativamente à necessidade de um hidrónimo para a metonimização do referente, não foi algo que tivéssemos proposto à partida dos nossos estudos, mas antes uma evidência inesperada que surgiu após inspeccionarem-se muitos armoriais. Aqui já tínhamos visto o Danúbio no brasão de Sagremor e o rio Itchen nas armas de fantasia de Eduardo o Confessor. Outras representações talvez mostrem com mais eloquência as conexões hidronímicas aos respectivos traços heráldicos. Tal será o caso das armas do Condado de Werdenberg (rio Tobel), do Condado da Borgonha (rio Saône), do Ducado da Baviera (rio Regen) e do Viscondado de Rochechouart (rio Vayres)[6]. Não sabemos ao certo quando e onde tudo começou mas esta aparenta ser uma peculiaridade dos brasões, ainda não detectada em moedas, selos primitivos ou o que quer que seja que tenha precedido a heráldica. Talvez no futuro se possa distinguir melhor a razão para estes hidrónimos aparecerem em tais circunstâncias.
O designante exequies precisa ser transformado em cor ou forma usando o conceito de exéquias, talvez por demais abrangente para desenhar-se de imediato. Acreditamos que esta transformação não foi decidida isoladamente, mas em conjunto com outros níveis semânticos considerados como viáveis pelo criador das armas. Para este fim tem lugar uma metonimização que selecciona apenas a conclusão da ideia contida em “exéquias”, o enterramento e sua representação objectiva - o sepulcro - e logo a sua matéria lítica. Focaliza-se o tema a partir do evento completo até ao pormenor da textura:
exéquias > túmulo > pedra > branca
O branco e o amarelo podem ser considerados como imanências da pedra como já vimos num grande número de espécimes que analisámos. O cinzento, o rosado e o acastanhado também poderiam ser presumidos mas devemo-nos limitar aos códigos cromáticos da heráldica. Talvez o amarelo, em vez do branco fosse considerado como uma escolha alternativa para a lápide que agora vemos. Devemos saber em primeiro lugar quem era o defunto, porque o significado será mais bem percebido na sua completa implementação.
O contributo deste nível para o significado visual do brasão não se limita ao esmalte. Auxilia, além disso, à definição das linhas fundamentais do enredo heráldico. Os funerais sugerem riquíssimas associações plásticas, a demandar os ritos que terão a sua conclusão na sepultura inferida nestas armas. A ser assim, também suporá um cadáver e um eventual epitáfio, que serão argumento para o próximo nível semântico. Ainda não sabemos o significado do restante mas o conjunto de cruzes poderia bem ser entendido como pertencendo às exéquias, num sentido geral.
Em condições menos restritivas seria possível derivar espontaneamente a individualidade de Cristo do dito cerimonial. Não parece poder haver qualquer dúvida na mentalidade dos cruzados: o funeral de maior significado em Jerusalém seria o que levou Jesus a enterrar. Contudo, as possibilidades semânticas destas armas são tão abundantes que o nome do defunto será declarado num nível próprio a ele dedicado. E seria esta eventualmente a razão porque nunca vemos um escudo pleno de prata como simplificação extrema das armas de Jerusalém: há sempre uma cruz presente.
A nossa percepção metodológica de [ch] como [k] em Ézéchias repete a heterofonia homográfica encontrada em Itchen ~ I chenne. É igualmente possível que os dialectos franceses setentrionais influenciassem os usos linguísticos ou que a pronúncia latina prevalecesse, evitando a palatalização logo desde o início. Desconhecemos em pormenores precisos a articulação e a ortografia do francês em Jerusalém por aquela altura, mas tudo o que precisamos é de algum bom-senso para decidir se as nossas parofonias podem ser admitidas ou não [7].
O índice de discrição é bastante superior ao que nos tínhamos habituado, já que k = 0,60, mas se escutarmos casualmente o som de Ézéchias ~ Exequies, a impressão é de uma similaridade aceitável. Isso explica por que tivemos de considerar a nossa escala de parofonias mais como um índice de admissibilidade do que como uma qualificação progressiva. A dimensão das duas palavras, emparelhadas com cinco elementos fonéticos, certamente não ajuda a diminuir a estimativa: mesmo se aplicarmos a correcção adequada às pequenas extensões, como se fez em Itchen ~ I chenne, esta apenas nos dará um valor ligeiramente inferior: k = 0,56.
Tais discrepâncias na avaliação dos índices de discrição são um facto a que devemos nos habituar, uma vez que se adoptou uma modelização heurística. Somente um modelo físico, baseado na correspondência das características acústicas, poderia produzir um resultado mais satisfatório. Devemos recordar, contudo, que uma boa parte das parofonias está também vinculada à escrita, o que enfraquece de algum modo esta modalidade de aperfeiçoamento.
Quem quer que seja a personalidade falecida, a sua condição manter-se-á na representação armorial. No caso especial de Cristo, num ambiente cristão, não se vê outra alternativa possível que não fosse a ressurreição ao terceiro dia. Devemos então considerar que o enredo acontece entre a Sexta Feira Santa e o Domingo de Páscoa. Isto porém não deverá necessariamente forçar-nos a incluir figurações como as chagas na nossa interpretação. As únicas fontes de inspiração primitivas que se devem considerar são as parofonias resultantes das metonímias do referente. Tudo o mais que se vê nos traços heráldicos, mesmo os complementos mais óbvios, não as devem contradizer.
Vale a pena, por fim, mencionar a importância atribuída ao Santo Sepulcro na época medieval, um dos motivos principais da conquista de Jerusalém. Godofredo de Bulhão, o primeiro soberano dos cruzados, foi declarado Protector do Santo Sepulcro e enterrado naquela Igreja, que assistiu a coroações e outros eventos da realeza depois disso. Será possível associar Jesus às exéquias estipuladas pelo esmalte? É o que veremos a seguir.
[1] DE VRIES, Hubert - Jerusalem - De Rode Leeuw - 2011 : Acedido a 23 de Setembro de 2012, disponível aqui.
[2] PARISIENSIS, Matthaei; MADDEN, Frederic (ed.) - Historia Anglorum - Londres: Longman, 1866-1869 : Acedido a 23 de Setembro de 2012, disponível aqui.
[3] PARISIENSIS, Matthaei - Historia Anglorum - (manuscrito), 1250-1259 : Acedido a 23 de Setembro de 2012, disponível aqui.
[4] WIELAND, Simon; RUTTEN, Lars; BEYELER, Markus - Medieval and Modern Coin Search Engine - mcsearch.info - 2012 : Acedido a 23 de Setembro de 2012, disponível aqui.
[5] CITY OF DAVID - Hezekiah’s Tunnel - (vídeo), s. d. : Acedido a 23 de Setembro de 2012, disponível aqui.
[6] DA FONTE, Carlos - Semântica Primitiva das Armas Nacionais e alguns dos seus Aspectos Sintácticos e Pragmáticos - Porto: FEUP, 2009 : Acedido a 23 de Setembro de 2012, disponível aqui.
[7] BETTENS, Olivier - Chantez-vous Français? - 1996-2012 : Acedido a 23 de Setembro de 2012, disponível aqui.
Reis de Jerusalém (I) | ||||||||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Classificação | ↓ | Descrição | ||||||||||
Armas de Domínio | R | Reis de Jerusalém | ||||||||||
Hidrónimo | M | Túnel de Ezequias | ||||||||||
Língua de Conquista | V | Francês | ||||||||||
Denominante | A | Ézéchias | ||||||||||
Grafemização | A | É | Z | É | C | H | I | A | S | ||||||||||
Fonemização denominante | A | e | z | e | k | iA | ||||||||||
Emparelhamento | A | e | z | e | k | iA | ||||||||||
A | E | gz | e | k | i | |||||||||||
Coeficiente de transposição | A | 0,0 | 0,0 | 0,0 | 0,0 | 0,0 | ||||||||||
Coeficiente de carácter | A | 0,5 | 0,5 | 0,0 | 0,0 | 0,5 | ||||||||||
Coeficiente de posição | A | 1,5 | 1,0 | 0,0 | 0,0 | 0,5 | ||||||||||
Parcelas | A | 0,8 | 0,5 | 0,0 | 0,0 | 0,3 | ||||||||||
Índice de discrição | A | k = 0,60 | ||||||||||
Heterofonia homográfica | A | (Ézé)ch(ias) > [(eze)S(iA)] | ||||||||||
A | (Ézé)ch(ias) > [(eze)k(iA)] | |||||||||||
Fonemização designante | A | E | gz | e | k | i | ||||||||||
Grafemização | A | E | X | E | Q | U | I | E | S | ||||||||||
Designante | A | exequies | ||||||||||
Outros substantivos | E | exéquias | ||||||||||
Monossemia simples | S | prata | ||||||||||
S | exequies | |||||||||||
Metonímia simples | S | exéquias > túmulo > pedra > branca | ||||||||||
Esmalte | H | esbranquiçado | De prata | |||||||||
Imanência | C | pedra | ||||||||||
Contraste | C | ouro | ||||||||||
Número | H | uma | ||||||||||
Figuração | H | cruz | ||||||||||
Aspecto | H | potenteia | ||||||||||
Esmalte | H | de ouro | ||||||||||
Localização | H | cantonada de | ||||||||||
Número | H | quatro | ||||||||||
Figuração | H | cruzetas | ||||||||||
Esmalte | H | do mesmo |
(próximo artigo nesta série II/XII)
Esta segunda parte da nossa análise procurará justificar a existência dos pássaros no escudo de Santo Eduardo o Confessor. Como aconteceu no caso da cruz, o desenho foi influenciado pela representação numismática precedente, que incluía apenas quatro aves assemelhadas a pombas - deveria existir alguma razão para o incremento de mais um pássaro no brasão.
Apesar do arranjo heráldico deixar implícito um espaço subjacente à cruz capaz de explicar o arranjo com cinco figurações, esta condição poderia ser facilmente corrigida pela extensão do braço inferior, deixando incólume a quantidade inicial. Segundo a análise feita em Eduardo o Confessor: C(e) roi ~ Crois, exigia-se apenas uma cruz, fosse ela grega, adequada à simetria circular, ou latina, ajustada à forma do escudo. Algo aconteceu, entretanto, que obrigou ao acrescentamento. A motivação, contudo, só poderá compreender-se integralmente com o artigo que se seguirá a este.
Eduardo, o nosso referente, quase por obrigação seria metonimizado através do próprio nome. Todos os exemplos que observámos nas moedas medievais usavam este recurso como ferramenta parofónica, que conjecturamos ser uma fonte insuspeita de inspiração para o desenvolvimento da linguagem heráldica paralelamente aos selos. Ao herdar o traço semântico, o escudo herdou também a correspondente língua de verbalização, o francês arcaico, em particular o falado na Normandia. Vemos portanto o Rei Santo ser expresso pela parofonia Edouard (fra. Eduardo) ~ Et due harde (fra. e respectivo bando). O denominante, na primeira parte, não apresenta qualquer problema mas o designante, na segunda, merece alguns comentários.
Lembramos que já dispomos de uma parofonia, por isso não seria de todo irrazoável juntar esta com aquela numa sequência frásica: Crois et due harde, ou mesmo entrecruzando-se o denominante com o designante: Ce roi et due harde. A função de et (fra. e) é meramente aditiva, conectando as duas parofonias e a justificar assim a existência. A palavra due, (fra. respectiva) apesar de não conservar o sentido no francês moderno, senão muito especificamente, podia interpretar-se no passado como: “devido”, “correspondente” ou “respectivo”. Deste modo, faz a ligação entre a cruz ou o rei e harde (fra. bando). Este último termo também já perdeu algo da significação antiga, contudo interessamo-nos apenas pela época medieval e aí, sem quaisquer dúvidas e com inúmeros exemplos, possui o sentido de um bando de aves.
Concluindo, a frase “cruz e respectivo bando de aves” parece perfeitamente coerente com as imagens que podem ser vistas na moeda de Eduardo o Confessor. Não quer isso dizer que não tenhamos de investigar, entre outras coisas, a coerência no sentido inverso, nem que não pudessem existir soluções alternativas ou até melhores o que, francamente, duvidamos. Referimos que desenvolvimentos como ait un harde ou et du harde não são possíveis porque harde é do género feminino.
A convergência semântica de um bando genérico de animais para um bando de aves em particular é realizada por uma primeira metonimização que reflecte a escolha do criador da moeda. Efectivamente poderia ter sido escolhido um bando de cervos mas a razão da preferência dever-se-á ao tamanho relativo dos animais e da cruz no desenho. Um bando de quadrúpedes, mesmo dos mais pequenos, exigiria uma enorme cruz, excluindo qualquer artefacto habitual, enquanto que um bando de pássaros configuraria uma cruz de dimensões mais aceitáveis, como as das cruzes processionais. Uma segunda metonimização transforma as aves em merletas por exigência do designante “bando” que não especifica nenhuma espécie em particular e recorrente na heráldica:
bando de animais > bando de aves
aves > merletas
Qual seria a razão para que as aves em referência fossem de início pombas, ou algo semelhante a elas, transformando-se posteriormente em merletas? A resposta é dada pela distância temporal entre as representações. Enquanto que na moeda procurou-se tomar indiferentemente uma ave comum e de índole gregária, no brasão obedeceram-se às regras heráldicas já em vigor, ao adoptar-se uma figuração que representasse os pássaros de um modo geral: a merleta.
Assistimos assim à segunda modificação do desenho original após a introdução do florenciado nas hastes da cruz. Estas lembravam a condição de rei, seria possível atribuir um significado específico às merletas? Não é a nossa opinião, pensamos dever-se apenas à necessidade de coerência na linguagem armorial. Também não é possível atribuir às pombas qualquer vinculação com a santidade do rei, posterior à cunhagem das moedas ou com a sua realeza, de resto já evidenciada naquele outro aspecto da figuração. Ademais, como a pomba simboliza o Espírito Santo, é bem possível que a simples presença da cruz fosse suficiente para lembrar o recurso àquela ave, mas a presença dos quatro exemplares invalida que as tomemos com a referida especificidade semântica.
Um ponto a merecer a nossa atenção é a atitude das aves. Apesar de não termos ainda alcançado a etapa da análise cromática, sabemos que o fundo sobre o qual repousam os pássaros é de cor azul. O mais cómodo seria assumir que um céu servisse de pano de fundo tanto às merletas como à cruz. Há um pormenor, contudo, que vem prejudicar este raciocínio: as aves estão com as asas recolhidas na moeda e no escudo, indicando que não poderiam estar a voar numa interpretação estrita.
Outra possibilidade seria atribuir o azul à água, na qual vogassem os cinco passarinhos. Mas é evidente que não se tratam de aves aquáticas e que a cruz, apesar de a podermos considerar em madeira permitindo assim que flutuasse, já possui os elementos metálicos da Coroa de Santo Eduardo, presumindo-se o restante no mesmo material. Seria de esperar que a cruz fosse em ouro e que a condição do nosso referente como santo exigisse um enredo imagético mais exaltante no acompanhamento figurativo. Mais uma vez devemos adiar a resposta às nossas indagações, agora no que diz respeito à análise do esmalte azul, que possui um nível semântico próprio, condicionado por uma metonímia do referente particular.
Os arranjos sintácticos são condicionados pela presença da cruz, que permite os espaços necessários à introdução das quatro aves. Não é fácil dizer qual das duas parofonias numismáticas terá sido imaginada em primeiro lugar. Eduardo, através das merletas, vem mais a propósito enquanto expressão linguística determinativa, já a cruz, gerada pela função real, ajusta-se melhor aos usos habitualmente reproduzidos nas moedas. De qualquer maneira, a junção das duas ideias só poderia ser feita consistentemente na forma como está apresentada. A introdução de uma merleta suplementar, como já vimos, implicou que se conservasse a cruz grega, aninhando-se a quinta figuração no espaço entre a ponta do escudo e a extremidade inferior da cruz florenciada. A cruz define um contorno quadrado virtual, a ajustar-se muito bem aos flancos e ao bordo superior do escudo, restando em consequência a ponta como região possível para instalar a dita merleta.
Se bem que exista de facto a mencionada associação do número de merletas à cruz, é bem evidente que ela está condicionada a montante. Não por a cruz ter quatro reentrâncias, mas pela especificação proporcionada por “bando”. Se hipoteticamente a parofonia descrevesse um duo ou um trio, seria necessário fazer os ajustamentos que lhe correspondessem. Porém, ao enunciar-se um bando, não poderemos imaginar apenas duas ou mesmo três aves. Talvez quatro seja o número mínimo aceitável, se nos lembrarmos de “quadrilha”, ideia afim, que encerra esta quantidade na etimologia.
Constitui-se assim o que poderíamos chamar de uma terceira metonimização, simples como as demais - bando > quatro (cinco) aves - que auxilia à passagem de um conceito numérico nebuloso para uma especificação precisa, se bem que em duas versões distintas de quatro e cinco exemplares, pela influência adicional de níveis semânticos distintos.
As centralidades são mais difíceis de definir. O desenho das merletas é inteiramente assimétrico e não permite que os espaços sobrantes sejam homogéneos, mesmo com a eventual correcta localização dos seus centros geométricos. Acresce à dificuldade que todos os pássaros estão orientados para a dextra do escudo, prejudicando as simetrias axiais relativamente à cruz e ao escudo, apesar de obedecerem estritamente às normativas implícitas que lhes são exigidas pelo brasonamento. Deveremos procurar um equilíbrio entre as silhuetas de todas as figurações entre si e os espaços intermédios que lhes correspondam, o que poderá variar de intérprete para intérprete, nós incluídos. De resto é algo que pouco ou nada dirá de valia para o aspecto semântico que nos interessa prioritariamente.
Eduardo o Confessor - Armas de Fantasia (II) | ||||||||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Classificação | ↓ | Descrição | ||||||||||
Armas de Fantasia | R | Eduardo o Confessor | ||||||||||
Antropónimo | M | Eduardo | ||||||||||
Língua de Influência | V | Francês | ||||||||||
Denominante | A | Edouard | ||||||||||
Grafemização | A | E | D | O | U | A | R | D | ||||||||||
Fonemização denominante | A | e | d | u | a | R | d | ||||||||||
Emparelhamento | A | e | d | u | a | R | d | ||||||||||
A | e | d | y | a | R | d | |||||||||||
Coeficiente de transposição | A | 0,0 | 0,0 | 0,0 | 0,0 | 0,0 | 0,0 | ||||||||||
Coeficiente de carácter | A | 0,0 | 0,0 | 0,5 | 0,0 | 0,0 | 0,0 | ||||||||||
Coeficiente de posição | A | 0,0 | 0,0 | 1,0 | 0,0 | 0,0 | 0,0 | ||||||||||
Parcelas | A | 0,0 | 0,0 | 0,5 | 0,0 | 0,0 | 0,0 | ||||||||||
Índice de discrição | A | k = 0,17 | ||||||||||
Fonemização designante | A | e | d | y | a | R | d | ||||||||||
Grafemização | A | E | T | | D | U | E | | H | A | R | D | E | ||||||||||
Designante | A | et due harde | ||||||||||
Zoologia | E | e respectivo bando | ||||||||||
Monossemia simples | S | bando | ||||||||||
S | merletas | |||||||||||
Esmalte | H | De azul | ||||||||||
Número | H | uma | ||||||||||
Figuração | H | cruz | ||||||||||
Aspecto | H | florenciada | ||||||||||
Esmalte | H | em ouro | ||||||||||
Localização | H | em cada cantão da cruz | acantonada de | |||||||||
Número | H | 4 | quatro | |||||||||
Metonímia simples | S | bando de animais > bando de aves | ||||||||||
Metonímia simples | S | aves > merletas | ||||||||||
Figuração | H | bando | merletas | |||||||||
Orientação | C | volvidas para a dextra | ||||||||||
Disposição | C | 2, 2 | ||||||||||
Centralidade | C | equilíbrio das silhuetas | ||||||||||
Conectivo | H | merletas + merleta | e | |||||||||
Metonímia simples | S | bando > 5 (4) aves | ||||||||||
Número | H | 1 | mais outra | |||||||||
Localização | H | debaixo da haste vertical da cruz | em ponta | |||||||||
Orientação | C | volvida para a dextra | ||||||||||
Simetria | C | equidistante das merletas laterais | ||||||||||
Centralidade | C | entre a ponta e o pé da cruz | ||||||||||
Número | H | todas | ||||||||||
Esmalte | H | do mesmo |
(próximo artigo nesta série III/VI)
Sem dúvida, este será um dos mais respeitados e difundidos exemplares dentre as armas de fantasia, seja pela figura mítica do patrono de Inglaterra que precedeu a São Jorge, seja pelo uso em armas verdadeiras, seja pela sobrevivência de artefactos que aludem ao seu nome como o trono, o ceptro e a coroa real dos monarcas ingleses, seja pela própria consideração que os assuntos heráldicos tiveram e continuam a ter nas Ilhas Britânicas. Sinal desta importância é o aparente cuidado posto na concepção das armas que lhe são atribuídas. Totaliza seis níveis semânticos, coisa rara na parofonia heráldica, cada um com a sua metonimização para o mesmo referente: Eduardo o Confessor. Aparecem pelo fim do século XIV integrando as armas de Ricardo II, possivelmente inspiradas numa moeda cunhada ao tempo do Rei Santo[1].
Pela primeira vez surge-nos a própria condição do armigerado - rei - como metonímia do referente. A causa deverá ser, por um lado, a importância das responsabilidades assumidas por Eduardo, por outro a provável intencionalidade de cópia, adaptada da numária deste soberano. Não é possível garantir absolutamente que a peça já fosse ela própria falante, como temos observado em outros exemplares pré-heráldicos da numismática ou da sigilografia[2].
Tudo indica que sim: a estreiteza das hastes que é repetida nas armas, o acrescento dos florões, específico à linguagem heráldica, a diversidade das figurações ornitológicas e o facto de serem apenas quatro inicialmente. Estas complementaridades ficarão mais claras nos artigos subsequentes. Aceitando-se a suposição devemos inferir o uso do francês arcaico na parofonia das moedas, o que não será demasiado difícil sabendo-se que Eduardo viveu muito tempo na Normandia, tendo levado naturais dali para Inglaterra; a sua própria mãe era normanda[3].
De facto, não se utilizou como antes o latim na verbalização deste plano semântico mas o francês ou alternativamente o anglo-normando, caso a cópia das moedas não possa ser aceite, ao contrário do que acreditamos, em qualquer das hipóteses a diferença será insignificante. Decorre da nossa proposta que a verbalização fez-se numa língua de influência, ainda não falada na corte, como aconteceu mais tarde: Ce roi (fra. este rei) ~ Crois (fra. cruz)[4].
Ambos os termos em confronto, Ce roi e Crois, produzem uma homofonia absoluta após providencial intervenção metonímica, ocasionando um índice de discrição nulo. A alteração do fonema /s/ em /k/ processa-se segundo a metonimização divergente:
ce (roi) > ce (este) > [se]
c(roi) < c (letra cê) < [se].
A metonímia é divergente porque, a partir de um mesmo elemento - a fonemização em [se] da palavra ce e da letra cê - fornecem-se duas interpretações distintas. Ambas estão no denominante, com /s/ a montante e /k/ a jusante, produzindo artificialmente a palavra croi, desprovida de sentido, útil apenas no emparelhamento fonético com crois. Note-se que a metonimização dos fonemas ocorre na etapa de sematização por tratar-se de uma mudança semântica e não na fase de acomodação, fundamentalmente fonética.
Ce (fra. este) cumpre uma função importante na construção da parofonia mas apenas estabelece uma monossemia elementar. Refere redundantemente que este rei é o rei de que se fala e que será representado nas armas parofonizadas. A sematização da cruz é ainda mais simples porque não há que usar qualquer artifício, a cruz do designante produz a cruz do traço heráldico, ponto final.
É perfeitamente cabível uma cruz feita de ouro, bronze, madeira ou qualquer matéria que lhe dê a cor amarelada. De facto a atribuição dos esmaltes, especialmente nas armas de fantasia, sintoniza-se amiúde com um material aceitável na figuração, com a descrição habitual “de sua cor” nem sempre usada. Entretanto, neste caso particular as cromatizações resultam de dois planos semânticos específicos e distintos, um para o azul do campo e outro para o ouro dos móveis, como veremos mais tarde. Razão de apresentamos apenas o contorno da cruz na imagem ilustrativa.
Os complementos redundantes são os de costume excepto no que toca à orientação da cruz. Exaustivamente conformada pela nossa cultura é bem evidente que uma cruz de sentido genérico só poderá estar com os braços paralelos ao horizonte visual. Não é assim na cruz de Santo André mas torna-se necessário especificá-la pelo nome. Trata-se, portanto, de uma imanência cultural da cruz, embebida no seu traço heráldico de orientação e na própria palavra.
Seria ainda necessário justificar a presença dos lises nas extremidades da cruz. Há uma enorme variedade de cruzes na heráldica, diferenciáveis pelas espessuras, formas, número e extensão dos braços mas, sobretudo, pelo arremate das extremidades. Será possível que cada formato possa estar ligado a uma justificação semântica através do referente?
Não podemos responder à pergunta, apenas nos ocuparemos deste exemplo por agora; o conjunto das propostas que formos apresentando no futuro encarregar-se-á de delimitar as atribuições respectivas. Os argumentos nem sempre radicarão num desígnio semântico absoluto, poderão tratar-se de complementações que, fugindo ao enfeite inconsequente liguem-se, ainda que de modo débil, ao enredo heráldico.
Deveremos introduzir aqui a definição de aspecto, conceito sempre ligado às figurações, especialmente as geométricas. É muito semelhante à noção clássica de atitude que descreve a postura dos animais. O aspecto é a parte de uma figuração que se diferencia caracteristicamente de outras figurações semelhantes por meio de um detalhe formal. Não sendo uma figuração independente em si mesma, o aspecto ajuda a identificar vários tipos ou modelizações de um mesmo desenho. O endentado e o ondado das faixas, os palhetões e as argolas das chaves, as pétalas e os espinhos das flores, as orelhas e as nervuras das vieiras exemplificarão suficientemente.
Voltando à necessidade da nossa justificativa, apesar de roi designar textualmente o rei, a associação deste conceito através da expressão visual de uma cruz grega simples não é de nenhum modo aparente. De mais a mais, na maior parte das parofonizações reais que estudámos verificou-se esse modo de analogia heterogénea entre a linguagem e a imagem. A maneira mais fácil de designar um rei apenas por um objecto é o uso de uma coroa, mais raro será ver o traço de aspecto numa cruz diferenciado por uma ou mais coroas.
Singularmente, para o rei de que nos ocupamos é possível encontrar uma peça histórica de relevo: a Coroa de Santo Eduardo[5]. O artefacto actual é uma jóia da Coroa Britânica, cópia de outra que existiu antes, esta talvez usada pelo referente. Se assim aconteceu de facto, não é demasiado importante, mas sim que o autor das armas pudesse estar convencido da sua autenticidade ou representatividade. Como a Coroa de Santo Eduardo apresenta quatro florões na sua circunferência, cada um deles deve ter sido incorporado às hastes da cruz heráldica obedecendo à metonimização:
rei > coroa > Coroa de Santo Eduardo > quatro florões
rei > Eduardo > Coroa de Santo Eduardo > quatro florões.
A metonímia é convergente, ou seja, sendo composta, ambas as linhas de contiguidade semântica vão ter ao mesmo conceito. Isso também acontece no estudo Salernum ~ Sal eremum relativamente ao sol.
Por outro lado, os florões são elementos habituais e característicos das coroas e mesmo que não existisse o artefacto seria possível fazer a associação; decerto com menor brilho expressivo. A figuração que estudamos é igualmente apresentada sob a forma de cruz patonce, com as hastes concavadas a crescer para o exterior, os lises mais curtos e as pétalas externas em concordância com o perímetro. Não vemos razão para alterar o nosso raciocínio mas comentamos que nesta circunstância poderíamos considerar cada inflorescência como uma coroa muito simplificada, para além dos mais óbvios florões.
[1] HERALDIC TIMES - The Arms of Edward the Confessor - s.d. : Acedido a 18 de Julho de 2012, http://heraldictimes.org/2010/12/10/the-arms-of-edward-the-confessor (inacessível).
[2] MICHELSEN, Mike - The Coat of Arms of Edward the Confessor - Mikes passing Thoughts Blog - 2010 : Acedido a 18 de Julho de 2012, disponível aqui.
[3] LUARD, Henry H. (ed.) - Lives of Edward the Confessor. La Estoire de Seint Aedward le Rei. Vita Beati Edvardi Regis et Confessoris. Vita Aeduuardi Regis qui apud Westmonasterium requiescit - Londres: Longman, 1858 : Acedido a 18 de Julho de 2012, disponível aqui.
[4] GODEFROY, Frédéric - Dictionnaire de l'Ancienne Langue Française et de tous ses Dialectes du IXème au XVème Siècle - Paris, 1880-1895 : Acedido a 18 de Julho de 2012, disponível aqui.
[5] SIDDONS, Michael - Regalia et Cérémonies du Royaume-Uni - Bulletin du Centre de Recherche du Château de Versailles, nº 2 - 2005 : Acedido a 18 de Julho de 2012, disponível aqui.
Eduardo o Confessor - Armas de Fantasia (I) | ||||||||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Classificação | ↓ | Descrição | ||||||||||
Armas de Fantasia | R | Eduardo o Confessor | ||||||||||
Condição | M | Rei | ||||||||||
Língua de Influência | V | Francês | ||||||||||
Denominante | A | ce roi | ||||||||||
Redundância | S | ce | ||||||||||
S | este aqui representado | |||||||||||
Monossemia simples | S | este rei | ||||||||||
S | este rei aqui representado | |||||||||||
Metonímia divergente | S | ce (roi) > ce (este) > [se] | ||||||||||
S | c(roi) < c (letra cê) < [se] | |||||||||||
Grafemização | A | C | R | O | I | ||||||||||
Fonemização denominante | A | k | R | w | a | ||||||||||
Emparelhamento | A | k | R | w | a | ||||||||||
A | k | R | w | a | |||||||||||
Coeficiente de transposição | A | 0,0 | 0,0 | 0,0 | 0,0 | ||||||||||
Coeficiente de carácter | A | 0,0 | 0,0 | 0,0 | 0,0 | ||||||||||
Coeficiente de posição | A | 0,0 | 0,0 | 0,0 | 0,0 | ||||||||||
Parcelas | A | 0,0 | 0,0 | 0,0 | 0,0 | ||||||||||
Índice de discrição | A | k = 0,0 | ||||||||||
Fonemização designante | A | k | R | w | a | ||||||||||
Grafemização | A | C | R | O | I | S | ||||||||||
Designante | A | crois | ||||||||||
Artefacto | E | cruz | ||||||||||
Monossemia simples | S | cruz | ||||||||||
S | cruz | |||||||||||
Esmalte | H | De azul | ||||||||||
Número | H | 1 | uma | |||||||||
Figuração | H | cruz | cruz | |||||||||
Simetria | C | radial | ||||||||||
Orientação | C | imanência | ||||||||||
Centralidade | C | abismo | ||||||||||
Metonímia convergente | S | rei > coroa > Coroa de S. Eduardo > 4 florões | ||||||||||
S | rei > Eduardo > Coroa de S. Eduardo > 4 florões | |||||||||||
Aspecto | H | rei | florenciada | |||||||||
Localização | C | arrematam cada haste da cruz | ||||||||||
Orientação | C | o pé para o interior | ||||||||||
Simetria | C | = cruz | ||||||||||
Esmalte | H | em ouro | ||||||||||
Localização | H | acantonada de | ||||||||||
Número | H | quatro | ||||||||||
Figuração | H | merletas | ||||||||||
Conectivo | H | e | ||||||||||
Número | H | mais outra | ||||||||||
Localização | H | em ponta | ||||||||||
Número | H | todas | ||||||||||
Esmalte | H | do mesmo |
(próximo artigo nesta série II/VI)
![]() |
![]() |
![]() |
![]() |
![]() |
![]() |
![]() |
![]() |