P: Armas falantes e parofonia heráldica serão conceitos incompatíveis?
R: O conceito de parofonia heráldica foi desenvolvido expressamente na nossa dissertação de modo a se poder estimar os fenómenos em análise e formular uma hipótese que auxiliasse aos seus objectivos. A necessidade de definir esta ideia com maior precisão derivou da insuficiência descritiva dos fenómenos heráldicos análogos: as armas falantes e os rébus. A tendência geral dos heraldistas tem sido de caracterizá-los por meio de conceitos similares: o trocadilho, a analogia ou a alegoria; mais evidentes nos casos de identificação perfeita entre o que se descreve e o que se desenha no brasão. Lembramos, pois, como definimos a parofonia heráldica:
Associação, por correspondência fonética, entre a designação de um ou mais elementos visuais heráldicos originais, o designante, e a denominação, directa ou indirecta, do referente do brasão, o denominante.
Note-se, em primeiro lugar, que se introduzem as indispensáveis definições subsidiárias do denominante e do designante, já que são estes os elementos que delimitam a acção "falante". Neste tipo de armas o denominante pode equiparar-se ao título do brasonamento, mas verificámos, mais tarde, o alargamento da sua extensão aplicativa. Já o designante pode ser identificado com a descrição do desenho no texto do brasonamento. Assim, o denominante Leão, do título Rei de Leão, é "falado" pelo designante leão, que se brasona: De prata um leão de púrpura
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Em segundo lugar apresenta o conceito de correspondência fonética entre o denominante e o designante. Ao invés das nebulosas analogias ou trocadilhos, aplicámos um princípio mensurável: os fonemas deveriam possuir uma associação biunívoca num e noutro elemento. Esta correspondência é definida na etapa de acomodação e por fim avaliada através do cálculo do índice de discrição, que ajudará a decidir da razoabilidade de se considerarem como parófonos o denominante e o designante.
Em terceiro lugar os elementos visuais das armas, o seu desenho e esmaltes, devem ser os primitivos, ou seja, os que lá foram postos aquando do estabelecimento de cada brasão. Não se podem incluir na análise parofónica ou, pelo menos, não é possível analisar segundo uma óptica falante, as armas herdadas, acrescentadas, adulteradas, etc. A ocasião bem determinada do nascimento de um brasão delimitará também, entre outros, o ambiente cultural, genealógico e histórico, especificando deste modo as línguas, as tradições heráldicos, os domínios territoriais, as influências políticas, etc.
Em quarto lugar o denominante, aquilo de que se fala, não se reduz ao título do brasonamento, sujeito aos caprichos da mão de quem o escreve, mas a algo semelhante, o referente, em estreita relação com o significante que encarna a simbolização do referente, o brasão. O caso mais usual de referente é o primeiro possuidor das armas, existem, contudo, outros géneros mais impessoais: os referentes institucionais, na heráldica das ordens militares, os profissionais, nos escudos das guildas, os eclesiásticos, nas armas diocesanas.
Finalmente, a denominação do referente não será, de hábito, a repetição do próprio, ou seja, o seu nome, mas uma outra denominação intermediante que surge por metonimização, constituindo uma ligação entre o referente e o denominante. Por se tratar de uma metonímia estabelece-se por contiguidade semântica, de tal modo que podemos, decerto, associar um conde ao nome do seu condado, mas também à localidade onde tinha residência ou aos vassalos de quem era senhor. E são estas metonímias que irão transformar-se em designante e depois em desenho e cor através dos processos linguísticos de verbalização, acomodação, sematização e especificação, que não importa agora pormenorizar.
As concepções tradicionais assumem também, por vezes, que a peça "principal" do escudo é a única imagem necessária e suficiente para caracterizar as armas falantes. Para além dessa principalidade ser um conceito bastante subjectivo, caberia ainda perguntar por que razão as peças "secundárias" ou mesmo os esmaltes deveriam estar excluídos destas considerações. No que se refere aos últimos, têm sido mencionados amiúde como falantes na literatura especializada; uma vez que se admitiu esta possibilidade não poderemos excluir terminantemente outras ocorrências no sistema heráldico, seja ele o tradicional ou o parofónico. Quanto às peças "secundárias" existem numerosos exemplos do seu uso nos rébus, bem esclarecedores deste ponto e remetendo para a mesma conclusão lógica da argumentação antecedente. Nos estudos que realizámos encontraram-se várias dezenas de parofonias em correspondência com os esmaltes ou com as ditas peças.
A fonte de inspiração para as armas falantes clássicas mostrou ser muito limitada. Quase todas, repetimos, aludem à menção explicitada na descrição jurisdicional ou familiar: O leão (llión) do Reino de Leão (Llión), as palhas (pallas) do Condado de Pallars (Pallars), o monge (Mönch) da cidade de Munique (München), as cabras da linhagem dos Cabral. A nossa pesquisa abalou esta presunção ao permitir-nos adaptar uma estrutura semiótica à heráldica, com exemplos manifestos do uso do nome de cidades, de orónimos, hidrónimos, etnónimos e antropónimos, além das clássicas denominações territoriais, nem por isso maioritárias. Estes usos parecem transcender as classificações jurisdicionais e tendem a manter-se coerentes, sejam impérios ou modestos senhorios.
Outra limitação, que nos parece mais artificial, seria a língua usada pelos autores das armas: se o brasão estivesse em França, usar-se-ia o francês, se em Espanha, o espanhol, se na Inglaterra, o inglês. Mas as coisas passavam-se de outro modo há mais de seiscentos anos atrás. Como se poderá ver no artigo Objecção II - O Uso do Latim, não existe nenhuma razão aceitável para excluir esta língua dos usos heráldicos primitivos. O latim correspondeu a 17% das parofonias encontradas nas amostras da dissertação e a noção dessa influência tem vindo a aumentar com o decorrer das pesquisas. O mesmo se pode afirmar das línguas, hoje minoritárias, que então eram geralmente compreendidas e aceites nos seus lugares de origem ou, em contraste, apenas por uma minoria que detinha o poder. O anglo-normando, conforme o que se averiguou, era a língua parofónica de eleição nas Ilhas Britânicas, produzindo quase 11% das parofonias por nós apresentadas. Não há outro modo de se compreender a mentalidade que construiu as armas falantes, senão transportarmo-nos à época em que foram feitas, muito distinta da actual em todos os aspectos.
Concluímos, portanto, que não é possível compatibilizar o ponto de vista convencional sobre as armas falantes e a parofonia heráldica. Isso não quer dizer que não se possam empregar conceitos e vocabulário comuns, uma vez que descrevem ambos os mesmos factos heráldicos. A principal diferença será que, enquanto o primeiro admite um extensão muito limitada do fenómeno, talvez 15% das armas antigas sejam tidas por falantes, a parofonia heráldica aventura-se a admitir que a maioria, senão mesmo quase todas as armas primitivas medievais obedeciam em maior ou menor grau às leis da parofonia.
P: Por quê a tese parece contrariar a tradição narrativa heráldica?
R: Nunca esteve nos meus horizontes a análise específica e aprofundada deste problema, que considero algo a jusante dos objectivos da tese, até porque esta dúvida não será propriamente uma objecção fundamental. A tradição neste caso é o relato de um acontecimento passado que umas gerações vão transmitindo a outras sucessivamente, até aos dias de hoje. Não se tratam de factos comprovados cientificamente como verdadeiros, mas podemos considerá-los em alguns casos como fontes documentais subsidiárias, a maior parte das vezes com grandes reservas. Ao revivê-los, especialmente se directamente afectados por eles, somos tentados a ignorar que estes legados sofreram a decrepitude imposta naturalmente pelo tempo. Seria natural esperar que a memória de episódios de há muitas centenas de anos tenham sido alteradas em maior ou menor grau, quando não passaram mesmo a pertencer ao domínio da fantasia. Constatamos como outra ciência auxiliar da História, a Genealogia, baseia muitas vezes as suas narrativas fundacionais em actos ousados, generosos, galantes ou até mesmo testemunhando a intervenção divina para justificação da nobreza de cada linhagem. É bem verdade que não são tidas em grande conta pelos próprios genealogistas mas por alguma razão esta apreciação parece alterar-se quando o assunto em discussão é a heráldica.
O nosso posicionamento não será tão severo como no primeiro caso, nem tão benevolente como no segundo. Julgamos que toda a narrativa tradicional associada a um brasão deva estar sempre bem presente no estudo da pragmática construída à volta de cada criação armorial; muitas vezes é o único elo que nos resta para além dos traços heráldicos. Porém isso não quererá dizer que se lhe devam atribuir foros de premissas incontestáveis. Apesar de tudo, um número bastante razoável de armas analisadas e comparadas com aquelas narrativas apresentou pontos de contacto manifestos. O estado presente da investigação permite aconselhar e incentivar o estudo desses pontos de contacto de modo a poder considerá-los mesmo como justificativas que reforçam as nossas hipóteses. Mas nenhum dos casos em estudo permite garantir um acordo próximo do absoluto entre os factos narrados e a semântica da respectiva construção armorial feita segundo a nossa metodologia.
Ademais, os mecanismos expressivos são bem distintos. O modelo parofónico procura uma explicação metodológica, em que cada uma das explicações dos traços visuais se fundamenta num reduzidíssimo número de proposições metonímicas, aplicáveis a qualquer caso. Os modelos tradicionais, por sua vez, usam todos os recursos da língua para expor uma história, verídica ou não, ajustada aos componentes de cada brasão.
Resumindo, ao aceitar-se a tese que proponho, esta representaria, na verdade, a recuperação de uma tradição que se perdeu ou deturpou com o tempo. Não se poderá dizer, portanto, que contrarie a tradição mas apenas que apresenta uma nova versão da verdade dos factos. E como, quando desconhecemos a verdade absoluta, ela nem sempre é uma só, afirmamos apenas que, em média, os resultados da tese discordam em boa parte das versões tradicionais que a antecederam, apesar de concordarem com elas em alguns pontos particulares.
P: Como se justifica o uso do latim nas parofonias heráldicas?
R: À primeira vista parece injustificável a utilização do latim medieval na heráldica, uma vez que não há menção do seu uso em quaisquer armas falantes. Convém, contudo, esclarecer que a “decisão” de classificar um brasão primitivo como falante, ocorre muito depois do mesmo ter sido criado. A sensibilidade do classificador era afectada por expectativas e condicionantes que, quase certamente, excluíam o recurso a uma língua estranha à própria nas suas cogitações. Não nos esclarece sobre as intenções ou conformidades dos restantes brasões, ainda se na área de influência limitada de cada um, possa ser coerente, pela maior parte, com a interpretação do método parofónico aqui proposto.
P: A existência dos besantes "em pinha", no mesmo período abrangido pelo estudo, não inviabializa a proposta ali defendida?
R: Os escudetes ditos pelo Barão Pinoteau "em cacho" ou "em pinha", caracterizam-se por aglomerados de besantes dentro do escudo, em número claramente superior aos onze usuais. O facto de existirem, por si só, é uma contradição ao que se propõe na tese, o que posso aceitar. Já não concordo que isso inviabilize a solução que apresentei. Não tratando estes estudos de ciências exactas mas de ciências humanas, outros factores devem, inevitavelmente, ser levados em consideração.
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