O par homofónico Sion (fra. Sião) ~ Cions (fra. rebentos) está entre as melhores parofonias encontradas nas Armas de Jerusalém. Foi perturbador achar uma conexão tão óbvia ao Reino, traduzindo-se em componentes visuais também evidentes, sem que nunca esta tenha chamado a atenção dos heraldistas de modo a considerarem-se as armas como falantes. Talvez não estejamos a ser razoáveis e alguém algures terá notado esta associação.
Não sabíamos se a metonímia do referente Sion, contígua ao Rei de Jerusalém, referia-se a Sião, ou seja à cidade de Jerusalém, ou ao Monte Sião ao sul da cidadela. Havia alguma confusão sobre a verdadeira localização daquele Monte e o seu relacionamento com o paço real dos cruzados, reflectindo-se na pesquisa do sentido da palavra usada para estabelecer os componentes heráldicos.
Assim que a resposta foi encontrada, foi necessário aumentar o número de níveis semânticos de dez para doze, acrescentando-se a residência real, ficando agora claro para nós que o denominante Sion representa a cidade de Jerusalém. Voltando ao denominante anterior Jérusalem, o qual também ignorávamos se estava ligado ao Reino ou à cidade, sabemos agora com segurança que se trata de uma metonímia referente do tipo territorial.
Uma cruz grega organizaria melhor a simetria e é a forma mais simples possível no conjunto daquela classe de figurações. As cruzetas partilham a forma com a figuração principal mas numa escala diminuta, quase num padrão fractal; permitiriam a acomodação das suas cópias em qualquer um dos quatro cantões. Em contraste, uma cruz latina seria capaz de acolher perfeitamente bem os seus clones nos cantões inferiores mais alongados mas não nos cantões quadrados superiores, ou vice-versa, dependendo do seu tamanho relativo.
As diagonais de cada cantão ajudam a centrar a localização de cada cruzeta, mas este aspecto complementar da heráldica não é o motivo principal por detrás desta disposição, que será completamente justificada no próximo artigo. Relativamente à mesma questão enfatizamos o facto fundamental de que uma cruzeta grega (G) permanece a mesma a cada rotação de 90º em torno do seu centro ou reflectida através da direcção das hastes ou através dos eixos bissectores, preservando a invariância do conjunto de pontos e definindo um grupo de oito simetrias no plano. Uma cruzeta latina (L) permanece a mesma para a permutação identidade e para a reflexão através das hastes verticais. Consequentemente, apenas o primeiro móvel é capaz de assegurar um arranjo simétrico harmonioso de vários elementos, como se verá no artigo a publicar em seguida.
G L - rotação horária de 0º (identidade)
G - rotação horária de 90º
G - rotação horária de 180º
G - rotação horária de 270º
G - reflexão através dos braços horizontais
G L - reflexão através dos braços verticais
G - reflexão através do eixo a 45º
G - reflexão através do eixo a 315º
Contudo, ainda se admite qualquer tipo de cruz nesta conjuntura, desde que todas compartilhem a mesma forma e mantenham a simetria radial. Como em qualquer acto replicável, devemos estar preparados para aceitar que algumas representações serão distintas das intenções primitivas e não seguirão as determinações parofónicas ali estabelecidas. Além disso, não estamos certos se o armigerado alguma vez conheceria estas regras parofónicas. Emitir moedas ou selos com base em descrições como “de prata uma cruz potenteia de ouro entre quatro cruzetas do mesmo” poderia ocasionar equívocos infelizes, arruinando discretamente partes cruciais do significado.
Há um exemplo heráldico similar e curioso onde está envolvida a coincidência de formas mas na direcção inversa, o sentido aparece a partir das imagens no brasão como desenvolvimento pragmático. Para as armas de Jerusalém deduzimos a similaridade partindo da parofonia. No caso do terceiro quartel das armas modernas de Aragão, mostrando quatro cabeças de mouros, acreditamos que a semelhança das figurações foi a razão principal para descreverem-se os naturais de Aragão como maños (ara. irmãos). Outros exemplos de símbolos territoriais usados em alcunhas estão disponíveis na nossa dissertação em Pragmática e Justificações.
Considerando-se a flexão plural cions, esta indica mais de um elemento, enquanto que, por exemplo, a tradução inglesa offspring já não o faz. Trata-se de um outro tipo de problema que devemos enfrentar. O significado parofónico intencional será certamente único, mas não o método escolhido para transmiti-lo. Além do mais sabemos que, mesmo para a mesma língua, a passagem dos anos dotará a maior parte das palavras com distintas formas lexicais ou significados. Quando o investigador aplica uma língua inteiramente distinta para tentar reproduzir as condições iniciais nem sempre é viável manter todas as subtilezas da semântica correspondente.
Note-se que o designante cions não especifica aonde devemos posicionar as cruzetas. Apenas sabemos que não estão isoladas, devido ao sufixo, e todas serão semelhantes, se bem que menores do que a cruz central. Nada de mais específico é dito sobre a sua quantidade e onde jazerão no que diz respeito à figuração principal e ao campo. Apesar de quaisquer argumentos em contrário, uma interpretação correcta poderia muito bem mostrar apenas duas cruzetas por cima da cruz, pelo menos como as coisas se apresentam neste momento. Por certo, se nada mais existisse na parofonia que nos auxiliasse a compor as figurações, outras normas heráldicas complementares ajudar-nos-iam a obter uma resultado adequado, talvez próximo à representação vista ao alto desta página.
Por fim, o termo cion é um substantivo mas não assegura nada de concreto que possa materializar-se sobre o escudo que temos diante de nós, devido ao carácter simbólico do seu análogo de maior dimensão. A acepção usual que sobreviveu em francês, scion, implica apenas a ideia vegetal de um rebento enquanto que a denotação genealógica de scion em inglês como herdeiro ou descendente, embora tardia, preserva melhor as raízes do seu significado primitivo em francês, similar ao português.
Podemos deduzir duas metonimizações de tudo o que se disse. As quantidades ainda não estão inteiramente envolvidas por agora, já que apenas podemos justificar duas escassas cruzetas. Veja-se que não ocorre aqui uma imitação, traço heráldico complementar desprovido da correspondência parofónica a montante; um bom exemplo deste fenómeno é a cruz de pé apontado que aparece nas armas de fantasia de Jerusalém no Zürcher Wappenrolle.
Poderia ademais ser considerada uma oposição, definida por “grande × pequeno”, mas sem qualquer consequência nos traços heráldicos, que derivam o tamanho relativo a partir do designante. Tudo o que se pode definir no presente nível é a motivação da emergência das cruzetas no que se refere à forma e dimensão desde cions através de um par de metonímias simples:
rebentos > filhos > irmãos > parecidos
rebentos > filhos > pequenos
O relacionamento com as “exéquias” parece ter desaparecido por agora, mas os próximos níveis mostrarão que a cruzetas estão integradas num significado mais abrangente, que concluirá com a viabilização completa do cenário previsto para estas armas. Há uma passagem nos Evangelhos que poderia dar apoio a um papel prematuro das cruzetas como componente do enredo:
1 Coríntios 12:12,27 “De facto, o corpo é um só, mas tem muitos membros; e no entanto, apesar de serem muitos, todos os membros do corpo formam um só corpo. Assim acontece também com Cristo ... Ora, vós sois o corpo de Cristo e sois Seus membros, cada um no seu lugar”
Não se introduz nada de radicalmente novo no aspecto formal, apenas consideram-se as cruzetas como extensões do corpo de Jesus, já representado pela peça principal. Provavelmente este sentido estabelece-se pela adjacência das figurações mais pequenas à personificação de Cristo como cruz. Em qualquer caso não consideramos este arranjo como determinante; outras representações aceitáveis e consistentes das armas de Jerusalém incluem cruzetas separadas.
Não devemos ainda concluir que as cruzetas pertençam ao epitáfio gravado sobre a lápide juntamente com a cruz. Não são apenas desiguais em tamanho, número e posição mas também equivalem a um outro artefacto feito de outro material. De resto, a cruz e as cruzetas não dispõem dos seus esmaltes, estes surgirão apenas no último nível referente a Jerusalém. O que importa assinalar é que já se encontrou a incorporação adequada para a primeira, a cruz actua como um epitáfio sobre uma sepultura, enquanto que as cruzetas preencherão as lacunas do seu sentido por inteiro no sexto nível. De momento são cruzes simbólicas que repetem o segundo nível semântico sem qualquer conexão visual óbvia ao enredo exequial.
Reis de Jerusalém (III) | ||||||||||||
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Classificação | ↓ | Descrição | ||||||||||
Armas de Domínio | R | Reis de Jerusalém | ||||||||||
Capital | M | Jerusalém | ||||||||||
Língua de Conquista | V | Francês | ||||||||||
Denominante | A | Sion | ||||||||||
Grafemização | A | S | I | O | N | ||||||||||
Fonemização denominante | A | s | j | Õ | ||||||||||
Emparelhamento | A | s | j | Õ | ||||||||||
A | s | j | Õ | |||||||||||
Coeficiente de transposição | A | 0,0 | 0,0 | 0,0 | ||||||||||
Coeficiente de carácter | A | 0,0 | 0,0 | 0,0 | ||||||||||
Coeficiente de posição | A | 0,0 | 0,0 | 0,0 | ||||||||||
Parcelas | A | 0,0 | 0,0 | 0,0 | ||||||||||
Índice de discrição | A | k = 0,0 | ||||||||||
Fonemização designante | A | s | j | Õ | ||||||||||
Grafemização | A | C | I | | O | N | S | ||||||||||
Designante | A | Cions | ||||||||||
Humano | E | rebentos | ||||||||||
Monossemia simples | S | cruzetas | ||||||||||
S | cions | |||||||||||
Esmalte | H | De prata | ||||||||||
Número | H | uma | ||||||||||
Figuração | H | cruz | ||||||||||
Aspecto | H | potenteia | ||||||||||
Esmalte | H | de ouro | ||||||||||
Localização | H | entre | ||||||||||
Número | H | quatro | ||||||||||
Metonímia simples | S | rebentos > filhos > irmãos > parecidos | ||||||||||
Metonímia simples | S | rebentos > crianças > pequenas | ||||||||||
Figuração | H | rebentos | cruzetas | |||||||||
Simetria | C | radial | ||||||||||
Orientação | C | imanência | ||||||||||
Esmalte | H | do mesmo |
(próximo artigo nesta série IV/XII)
A representação escolhida para o segundo nível semântico - a cruz principal - provavelmente foi o primeiro elemento a aparecer nestas armas, não uma cruz potenteia mas uma cruz simples, fosse ela firmada ou solta. Na verdade não sabemos muito sobre sinais similares que se usassem numa alusão cristã à Cidade Santa em época proto-heráldica. É bem possível que cruzes estivessem incluídas nessa ilustração eventual mas duvidamos que a parofonia pudesse desempenhar ali qualquer papel, pelo menos na forma descrita abaixo. Talvez Jesus e os quatro Evangelistas ou as Cinco Chagas do Senhor pudessem explicá-las com outra fundamentação; de facto são apontadas frequentemente como motivos credíveis para as armas que estudamos.
O significado constrói-se a partir da parofonia: Jérusalem (fra. Jerusalém) ~ Je ruse la haine (fra. Eu afasto o ódio). A denotação de ruser/reuser mudou ao longo dos anos. Hoje significa “iludir” ou “enganar” mas naquela época e ambientação, ruse deveria ser interpretado como “repilo”, “rechaço” ou “afasto”. Ademais, a intransitividade de ruse não permite, tanto quanto saibamos, Je ruse a la haine e o carácter aspirado do “h” inicial, impede Je ruse l'haine.
A etapa de especificação (E) define uma nova tipologia. Desta vez não se apresentam substantivos, acções, quantidades ou qualidades isoladas mas uma frase a traduzir-se visualmente como um todo. Funciona como uma citação ou, tendo em conta a ambientação exequial já estabelecida em Ézéchias ~ Exequies, como um epitáfio. De momento classificaremos este género de especificação em “outros”, aguardando por mais ocorrências que fundamentem uma classe própria.
Finalmente estamos em condições de apresentar um exemplo da transposição de fonemas durante a acomodação (A); inclui-se no emparelhamento de [ZeryzalEm] ~ [Z@R\yzlaEn]. Trata-se de uma importantíssima ferramenta parofónica, dando liberdade ao autor de usar apenas sons idênticos ou similares que trocam de lugar no vocábulo sempre que estritamente necessário. Note-se que para fins de cálculo procederemos de início à transposição [al] ~ [la] com a sua penalidade associada, o coeficiente de transposição t = 1. Aplicamos depois todas as penalizações restantes, ou seja, as modificações qualitativas nos fonemas, com os seus coeficientes de carácter c, de acordo com os respectivos posicionamentos no interior da palavra, medidos pelos coeficientes de posição p.
As discrepâncias entre os fonemas [e ~ @], [r ~ R\] e [m ~ n] são relativamente ligeiras e talvez não possam ser justificadas com o índice de discrição resultante, que se eleva a k = 0,50. Enquanto a modelização não substituir esta medida por outra mais eficaz devemos sujeitar-nos a tais desvios. O estabelecimento das penalidades é grosseiro e quase arbitrário mas a sua associação propicia um efeito dicotómico conveniente para auxiliar a nossa tarefa.
Preparamo-nos agora para responder à pergunta - Quem é o defunto? Como todo o ser humano eventualmente morre, buscaremos alguém cuja morte tenha sido relevante para a história ou para a tradição, de tal modo que pudesse ser lembrado pelos cruzados ou por quem quer que contemplasse as armas dos Reis de Jerusalém. Carece ainda recordar aqui o fenómeno da sublimação, onde só a representação de maior estatuto aufere o significado. Isto acontece com o vago felino de Katzenelnbogen, tempestivamente transformado num feroz leão. Procuramos, portanto, uma individualidade assinalável.
Jerusalém deve estar envolvida de algum modo nas “exéquias” e a referida personalidade não opor-se-á ao lado cristão, já que inexistem motivações visuais no brasão que suponham o contrário. Poderá parecer uma incongruência heráldica mas exemplificamos com as armas de Portugal: os escudetes dispostos em cruz são entendidos de hábito como cinco inimigos, reis Mouros derrotados por D. Afonso Henriques. Resta dizer que o resultado visual deste segundo nível necessita combinar satisfatoriamente com o primeiro nível: um túmulo em pedra.
Em relação ao nível semântico actual, Je (fra. Eu) poderia personificar a pessoa falecida ou o próprio escudo a título de individualidade falante, como o que se viu em Danubius ~ Da nubis. É bem claro para nós que a segunda opção é inviável aqui. Daí que a frase em questão representasse, no pior dos casos, alguém que se soubesse ter reproduzido em vida o significado de Je ruse la haine. Mais adequadamente ao nosso enredo, a expressão precisa estar associada com a sua sepultura por meio de um epitáfio irreal mas plausível, a resumir os incidentes de toda uma existência.
Observamos uma oposição implícita em Je ruse la haine onde o ódio é confrontado por algo que se interpreta como o seu oposto, o amor, que por sua vez incorpora-se em alguém ainda desconhecido. Contudo, esta oposição não surge explicitamente nos traços heráldicos (H). Como resultado, o conjunto de associações {exéquias, Jerusalém, cristão, eminente, sepultura, epitáfio, oposto ao ódio} produziria apenas uma pessoa: Jesus Cristo. De facto, os Evangelhos sublinham a importância deste conceito em Jo 13, 34: “Dou-vos um mandamento novo: amai-vos uns aos outros. Assim como Eu vos amei, também vós deveis amar-vos uns aos outros”.
Observe-se que não foi necessário aplicar o forte poder identificativo da cruz em todo o raciocínio. Por seu lado, os autores das armas não tinham qualquer obrigação heráldica de adoptarem uma cruz na sua simbologia, tratando-se de uma mera consequência parofónica. Isto não implica a sua dispensa como indício por nós interpretantes, que dependemos do caminho inverso ao da criação. Entretanto, a nossa abordagem de cariz oportunamente didáctico servirá para mais situações.
As metonímias emergem para admitir a conversão da nossa frase inspiradora numa cruz. Não é tão simples como possa parecer, a despeito de todos os argumentos que já avançámos. Em lugar da confusa reunião de conceitos vista mais acima, necessitamos agora de uma sequência ordenada de ideias que irão fixar a estrutura de sematização (S) de modo seguro. Apenas termos inequívocos, como o numeral gerado por Seint ~ Cinc, estão habilitados a prover uma transcrição imediata em traços heráldicos; não é o caso aqui.
Jesus era visto como o Cordeiro de Deus sem pecado, sacrificado na cruz pelo amor dos homens. Encontramos a convergência numa cruz heráldica através da composição de duas metonímias que incluem as ideias opostas de amor e ódio, respectivamente implícito e explícito em Je ruse la haine:
Jesus > amor > morrer > sacrifício > cruz
pecado > ódio > matar > punição > cruz
Uma outra metonímia composta e convergente irá relacionar-se com o primeiro nível semântico, estabelecendo uma ligação entre as duas etapas. Principia com a temática anterior, as exéquias e o túmulo, ocupando-se então com a substituição do designante na forma de um epitáfio - Je ruse la haine - por fim simbolizado pela cruz; alegoria corrente nas lápides cristãs. Em simultâneo vemos a cruz contígua a Jesus, uma associação cultural indiscutível. Pareceria quase redundante referi-lo mas devemos consciencializar-nos de que esta metonímia é específica à representação do próprio Cristo nas armas de Jerusalém e não uma alusão genérica ao túmulo de um cristão:
exéquias > túmulo > epitáfio > cruz
Jesus > cruz
Abordaremos agora as representatividades complementares destes símbolos e dos seus supostos fundamentos. As acepções encontradas entram em conflito com a luta dos cruzados? Primeiro de tudo, não sabemos exactamente quando as armas nasceram, de modo que pudéssemos detectar todas as fontes específicas de inspiração. Mas é verdade que a guerra, defensiva ou agressiva, acompanhada pela violência, foi uma circunstância constante na efémera vida do Reino. Como poderiam os cruzados reconciliar isto com os ensinamentos pacíficos do Nazareno?
Os aspectos incidentalmente religiosos desta génese heráldica não nos podem desorientar; eles representam os responsáveis políticos de Jerusalém mas por mero acaso. Para mais, a guerra medieval era amplamente aceite e entendida como uma necessidade e mesmo um dever para os cristãos, incluindo-se aí a Santa Sé. Neste contexto, ruse (fra. afasto) poderia ser concebido ainda como o combate ou o banimento dos inimigos dos Reis de Jerusalém, hostis portanto a qualquer cristão. O conflito com a nossa proposta para a expressão parofónica apenas mostra que a concepção e a evolução do significado são duas coisas distintas, nem sempre permeáveis entre si em todos os aspectos.
Além disso, o verbo está no tempo presente - Eu afasto o ódio - conotando a ressurreição e a vida eterna de Cristo. Também não contradiz a nossa afirmação anterior referente à manutenção da Sua condição de morto no enredo heráldico. Referíamo-nos então à directa sugestão parofónica de todos os traços visuais. Obviamente, uma infinidade de conotações e desenvolvimentos semânticos são possíveis a partir dali. Mas alguns deles, que nos sentimos obrigados a citar, são mais adequados e imediatos do que os demais.
Empregamos uma cruz grega em vez de uma cruz firmada na nossa exemplificação figurativa porque é a melhor maneira de mostrar a evolução conjectural dos sinais exibidos pelos Reis de Jerusalém. À partida não há nenhuma razão especial para acreditar que a cruz firmada pudesse ter um significado distinto da cruz grega. A primeira aparece efectivamente em armoriais durante um período em que as composições geométricas eram preferidas pela heráldica. A cruz firmada é mais simples e seria por certo uma escolha permanente se outros constituintes não afectassem a seguir a sua forma. Esta peça fundamental deverá ter actuado como um símbolo de Cristo e não como um artefacto, manifestamente durante os primeiros anos. Conheceremos ainda um segundo entendimento da cruz também usada pelos Reis de Chipre, que favoreceram uma figuração solta.
Inspirações viáveis e inclusivas de um tipo diferente poderiam ser a cópia da Vera Cruz desenhada sob a forma de uma cruz latina ou a imitar a tampa de uma sepultura. Esta última seria quase necessariamente afectada pela lápide do Santo Sepulcro, que já se dizia estar em más condições já no século XI. Presumimos que a laje original foi substituída ou oculta na sequência das modificações realizadas na edícula.
Os traços complementares (C) governam as características que não se justificam por quaisquer proposições semânticas. Para a cruz principal vemos a incidência ordinária da centralidade no abismo bem como a orientação horizontal e vertical ou a simetria radial que são imanências da cruz em grau diverso. A largura dos braços também sofre o efeito de traços complementares. Além da natural conservação da espessura ao longo das quatro hastes, as proporções relativas devem ser suficientes para admitir, por exemplo, algumas cruzetas no espaço restante. Haverá mais comentários a fazer sobre a interferência mútua dos níveis semânticos, mas serão tratados noutros artigos mais adequados a cada caso.
Reis de Jerusalém (II) | ||||||||||||
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Classificação | ↓ | Descrição | ||||||||||
Armas de Domínio | R | Reis de Jerusalém | ||||||||||
Territorial | M | Jerusalém | ||||||||||
Língua de Conquista | V | Francês | ||||||||||
Denominante | A | Jérusalem | ||||||||||
Grafemização | A | J | E | R | U | S | A | L | E | M | ||||||||||
Fonemização denominante | A | Z | e | r | y | z | a | l | E | m | ||||||||||
Emparelhamento | A | Z | e | r | y | z | a | l | E | m | ||||||||||
A | Z | @ | R\ | y | z | l | a | E | n | |||||||||||
Coeficiente de transposição | A | 0,0 | 0,0 | 0,0 | 0,0 | 0,0 | 1,0 | 0,0 | 0,0 | 0,0 | ||||||||||
Coeficiente de carácter | A | 0,0 | 0,5 | 0,5 | 0,0 | 0,0 | 0,0 | 0,0 | 0,0 | 0,5 | ||||||||||
Coeficiente de posição | A | 0,0 | 1,0 | 1,0 | 0,0 | 0,0 | 0,0 | 0,0 | 0,0 | 0,5 | ||||||||||
Parcelas | A | 0,0 | 0,5 | 0,5 | 0,0 | 0,0 | 0,0 | 0,0 | 0,0 | 0,3 | ||||||||||
Índice de discrição | A | k = 0,50 | ||||||||||
Fonemização designante | A | Z | @ | R\ | y | z | l | a | E | n | ||||||||||
Grafemização | A | J | E | | R | U | S | E | | L | A | | H | A | I | N | E | ||||||||||
Designante | A | je ruse la haine | ||||||||||
Outros | E | Eu afasto o ódio | ||||||||||
Monossemia simples | S | cruz | ||||||||||
S | je ruse la haine | |||||||||||
Esmalte | H | De prata | ||||||||||
Número | H | 1 | uma | |||||||||
Metonímia convergente | S | exéquias > túmulo > epitáfio > cruz | ||||||||||
S | Jesus > cruz | |||||||||||
Metonímia convergente | S | Jesus > amor > morrer > sacrifício > cruz | ||||||||||
S | pecado > ódio > matar > punição > cruz | |||||||||||
Figuração | H | Jesus | cruz | |||||||||
Simetria | C | radial | ||||||||||
Orientação | C | imanência | ||||||||||
Centralidade | C | abismo | ||||||||||
Aspecto | H | potenteia | ||||||||||
Esmalte | H | de ouro | ||||||||||
Localização | H | entre | ||||||||||
Número | H | quatro | ||||||||||
Figuração | H | cruzetas | ||||||||||
Esmalte | H | do mesmo |
(próximo artigo nesta série III/XII)
Esta segunda parte da nossa análise procurará justificar a existência dos pássaros no escudo de Santo Eduardo o Confessor. Como aconteceu no caso da cruz, o desenho foi influenciado pela representação numismática precedente, que incluía apenas quatro aves assemelhadas a pombas - deveria existir alguma razão para o incremento de mais um pássaro no brasão.
Apesar do arranjo heráldico deixar implícito um espaço subjacente à cruz capaz de explicar o arranjo com cinco figurações, esta condição poderia ser facilmente corrigida pela extensão do braço inferior, deixando incólume a quantidade inicial. Segundo a análise feita em Eduardo o Confessor: C(e) roi ~ Crois, exigia-se apenas uma cruz, fosse ela grega, adequada à simetria circular, ou latina, ajustada à forma do escudo. Algo aconteceu, entretanto, que obrigou ao acrescentamento. A motivação, contudo, só poderá compreender-se integralmente com o artigo que se seguirá a este.
Eduardo, o nosso referente, quase por obrigação seria metonimizado através do próprio nome. Todos os exemplos que observámos nas moedas medievais usavam este recurso como ferramenta parofónica, que conjecturamos ser uma fonte insuspeita de inspiração para o desenvolvimento da linguagem heráldica paralelamente aos selos. Ao herdar o traço semântico, o escudo herdou também a correspondente língua de verbalização, o francês arcaico, em particular o falado na Normandia. Vemos portanto o Rei Santo ser expresso pela parofonia Edouard (fra. Eduardo) ~ Et due harde (fra. e respectivo bando). O denominante, na primeira parte, não apresenta qualquer problema mas o designante, na segunda, merece alguns comentários.
Lembramos que já dispomos de uma parofonia, por isso não seria de todo irrazoável juntar esta com aquela numa sequência frásica: Crois et due harde, ou mesmo entrecruzando-se o denominante com o designante: Ce roi et due harde. A função de et (fra. e) é meramente aditiva, conectando as duas parofonias e a justificar assim a existência. A palavra due, (fra. respectiva) apesar de não conservar o sentido no francês moderno, senão muito especificamente, podia interpretar-se no passado como: “devido”, “correspondente” ou “respectivo”. Deste modo, faz a ligação entre a cruz ou o rei e harde (fra. bando). Este último termo também já perdeu algo da significação antiga, contudo interessamo-nos apenas pela época medieval e aí, sem quaisquer dúvidas e com inúmeros exemplos, possui o sentido de um bando de aves.
Concluindo, a frase “cruz e respectivo bando de aves” parece perfeitamente coerente com as imagens que podem ser vistas na moeda de Eduardo o Confessor. Não quer isso dizer que não tenhamos de investigar, entre outras coisas, a coerência no sentido inverso, nem que não pudessem existir soluções alternativas ou até melhores o que, francamente, duvidamos. Referimos que desenvolvimentos como ait un harde ou et du harde não são possíveis porque harde é do género feminino.
A convergência semântica de um bando genérico de animais para um bando de aves em particular é realizada por uma primeira metonimização que reflecte a escolha do criador da moeda. Efectivamente poderia ter sido escolhido um bando de cervos mas a razão da preferência dever-se-á ao tamanho relativo dos animais e da cruz no desenho. Um bando de quadrúpedes, mesmo dos mais pequenos, exigiria uma enorme cruz, excluindo qualquer artefacto habitual, enquanto que um bando de pássaros configuraria uma cruz de dimensões mais aceitáveis, como as das cruzes processionais. Uma segunda metonimização transforma as aves em merletas por exigência do designante “bando” que não especifica nenhuma espécie em particular e recorrente na heráldica:
bando de animais > bando de aves
aves > merletas
Qual seria a razão para que as aves em referência fossem de início pombas, ou algo semelhante a elas, transformando-se posteriormente em merletas? A resposta é dada pela distância temporal entre as representações. Enquanto que na moeda procurou-se tomar indiferentemente uma ave comum e de índole gregária, no brasão obedeceram-se às regras heráldicas já em vigor, ao adoptar-se uma figuração que representasse os pássaros de um modo geral: a merleta.
Assistimos assim à segunda modificação do desenho original após a introdução do florenciado nas hastes da cruz. Estas lembravam a condição de rei, seria possível atribuir um significado específico às merletas? Não é a nossa opinião, pensamos dever-se apenas à necessidade de coerência na linguagem armorial. Também não é possível atribuir às pombas qualquer vinculação com a santidade do rei, posterior à cunhagem das moedas ou com a sua realeza, de resto já evidenciada naquele outro aspecto da figuração. Ademais, como a pomba simboliza o Espírito Santo, é bem possível que a simples presença da cruz fosse suficiente para lembrar o recurso àquela ave, mas a presença dos quatro exemplares invalida que as tomemos com a referida especificidade semântica.
Um ponto a merecer a nossa atenção é a atitude das aves. Apesar de não termos ainda alcançado a etapa da análise cromática, sabemos que o fundo sobre o qual repousam os pássaros é de cor azul. O mais cómodo seria assumir que um céu servisse de pano de fundo tanto às merletas como à cruz. Há um pormenor, contudo, que vem prejudicar este raciocínio: as aves estão com as asas recolhidas na moeda e no escudo, indicando que não poderiam estar a voar numa interpretação estrita.
Outra possibilidade seria atribuir o azul à água, na qual vogassem os cinco passarinhos. Mas é evidente que não se tratam de aves aquáticas e que a cruz, apesar de a podermos considerar em madeira permitindo assim que flutuasse, já possui os elementos metálicos da Coroa de Santo Eduardo, presumindo-se o restante no mesmo material. Seria de esperar que a cruz fosse em ouro e que a condição do nosso referente como santo exigisse um enredo imagético mais exaltante no acompanhamento figurativo. Mais uma vez devemos adiar a resposta às nossas indagações, agora no que diz respeito à análise do esmalte azul, que possui um nível semântico próprio, condicionado por uma metonímia do referente particular.
Os arranjos sintácticos são condicionados pela presença da cruz, que permite os espaços necessários à introdução das quatro aves. Não é fácil dizer qual das duas parofonias numismáticas terá sido imaginada em primeiro lugar. Eduardo, através das merletas, vem mais a propósito enquanto expressão linguística determinativa, já a cruz, gerada pela função real, ajusta-se melhor aos usos habitualmente reproduzidos nas moedas. De qualquer maneira, a junção das duas ideias só poderia ser feita consistentemente na forma como está apresentada. A introdução de uma merleta suplementar, como já vimos, implicou que se conservasse a cruz grega, aninhando-se a quinta figuração no espaço entre a ponta do escudo e a extremidade inferior da cruz florenciada. A cruz define um contorno quadrado virtual, a ajustar-se muito bem aos flancos e ao bordo superior do escudo, restando em consequência a ponta como região possível para instalar a dita merleta.
Se bem que exista de facto a mencionada associação do número de merletas à cruz, é bem evidente que ela está condicionada a montante. Não por a cruz ter quatro reentrâncias, mas pela especificação proporcionada por “bando”. Se hipoteticamente a parofonia descrevesse um duo ou um trio, seria necessário fazer os ajustamentos que lhe correspondessem. Porém, ao enunciar-se um bando, não poderemos imaginar apenas duas ou mesmo três aves. Talvez quatro seja o número mínimo aceitável, se nos lembrarmos de “quadrilha”, ideia afim, que encerra esta quantidade na etimologia.
Constitui-se assim o que poderíamos chamar de uma terceira metonimização, simples como as demais - bando > quatro (cinco) aves - que auxilia à passagem de um conceito numérico nebuloso para uma especificação precisa, se bem que em duas versões distintas de quatro e cinco exemplares, pela influência adicional de níveis semânticos distintos.
As centralidades são mais difíceis de definir. O desenho das merletas é inteiramente assimétrico e não permite que os espaços sobrantes sejam homogéneos, mesmo com a eventual correcta localização dos seus centros geométricos. Acresce à dificuldade que todos os pássaros estão orientados para a dextra do escudo, prejudicando as simetrias axiais relativamente à cruz e ao escudo, apesar de obedecerem estritamente às normativas implícitas que lhes são exigidas pelo brasonamento. Deveremos procurar um equilíbrio entre as silhuetas de todas as figurações entre si e os espaços intermédios que lhes correspondam, o que poderá variar de intérprete para intérprete, nós incluídos. De resto é algo que pouco ou nada dirá de valia para o aspecto semântico que nos interessa prioritariamente.
Eduardo o Confessor - Armas de Fantasia (II) | ||||||||||||
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Classificação | ↓ | Descrição | ||||||||||
Armas de Fantasia | R | Eduardo o Confessor | ||||||||||
Antropónimo | M | Eduardo | ||||||||||
Língua de Influência | V | Francês | ||||||||||
Denominante | A | Edouard | ||||||||||
Grafemização | A | E | D | O | U | A | R | D | ||||||||||
Fonemização denominante | A | e | d | u | a | R | d | ||||||||||
Emparelhamento | A | e | d | u | a | R | d | ||||||||||
A | e | d | y | a | R | d | |||||||||||
Coeficiente de transposição | A | 0,0 | 0,0 | 0,0 | 0,0 | 0,0 | 0,0 | ||||||||||
Coeficiente de carácter | A | 0,0 | 0,0 | 0,5 | 0,0 | 0,0 | 0,0 | ||||||||||
Coeficiente de posição | A | 0,0 | 0,0 | 1,0 | 0,0 | 0,0 | 0,0 | ||||||||||
Parcelas | A | 0,0 | 0,0 | 0,5 | 0,0 | 0,0 | 0,0 | ||||||||||
Índice de discrição | A | k = 0,17 | ||||||||||
Fonemização designante | A | e | d | y | a | R | d | ||||||||||
Grafemização | A | E | T | | D | U | E | | H | A | R | D | E | ||||||||||
Designante | A | et due harde | ||||||||||
Zoologia | E | e respectivo bando | ||||||||||
Monossemia simples | S | bando | ||||||||||
S | merletas | |||||||||||
Esmalte | H | De azul | ||||||||||
Número | H | uma | ||||||||||
Figuração | H | cruz | ||||||||||
Aspecto | H | florenciada | ||||||||||
Esmalte | H | em ouro | ||||||||||
Localização | H | em cada cantão da cruz | acantonada de | |||||||||
Número | H | 4 | quatro | |||||||||
Metonímia simples | S | bando de animais > bando de aves | ||||||||||
Metonímia simples | S | aves > merletas | ||||||||||
Figuração | H | bando | merletas | |||||||||
Orientação | C | volvidas para a dextra | ||||||||||
Disposição | C | 2, 2 | ||||||||||
Centralidade | C | equilíbrio das silhuetas | ||||||||||
Conectivo | H | merletas + merleta | e | |||||||||
Metonímia simples | S | bando > 5 (4) aves | ||||||||||
Número | H | 1 | mais outra | |||||||||
Localização | H | debaixo da haste vertical da cruz | em ponta | |||||||||
Orientação | C | volvida para a dextra | ||||||||||
Simetria | C | equidistante das merletas laterais | ||||||||||
Centralidade | C | entre a ponta e o pé da cruz | ||||||||||
Número | H | todas | ||||||||||
Esmalte | H | do mesmo |
(próximo artigo nesta série III/VI)
Sem dúvida, este será um dos mais respeitados e difundidos exemplares dentre as armas de fantasia, seja pela figura mítica do patrono de Inglaterra que precedeu a São Jorge, seja pelo uso em armas verdadeiras, seja pela sobrevivência de artefactos que aludem ao seu nome como o trono, o ceptro e a coroa real dos monarcas ingleses, seja pela própria consideração que os assuntos heráldicos tiveram e continuam a ter nas Ilhas Britânicas. Sinal desta importância é o aparente cuidado posto na concepção das armas que lhe são atribuídas. Totaliza seis níveis semânticos, coisa rara na parofonia heráldica, cada um com a sua metonimização para o mesmo referente: Eduardo o Confessor. Aparecem pelo fim do século XIV integrando as armas de Ricardo II, possivelmente inspiradas numa moeda cunhada ao tempo do Rei Santo[1].
Pela primeira vez surge-nos a própria condição do armigerado - rei - como metonímia do referente. A causa deverá ser, por um lado, a importância das responsabilidades assumidas por Eduardo, por outro a provável intencionalidade de cópia, adaptada da numária deste soberano. Não é possível garantir absolutamente que a peça já fosse ela própria falante, como temos observado em outros exemplares pré-heráldicos da numismática ou da sigilografia[2].
Tudo indica que sim: a estreiteza das hastes que é repetida nas armas, o acrescento dos florões, específico à linguagem heráldica, a diversidade das figurações ornitológicas e o facto de serem apenas quatro inicialmente. Estas complementaridades ficarão mais claras nos artigos subsequentes. Aceitando-se a suposição devemos inferir o uso do francês arcaico na parofonia das moedas, o que não será demasiado difícil sabendo-se que Eduardo viveu muito tempo na Normandia, tendo levado naturais dali para Inglaterra; a sua própria mãe era normanda[3].
De facto, não se utilizou como antes o latim na verbalização deste plano semântico mas o francês ou alternativamente o anglo-normando, caso a cópia das moedas não possa ser aceite, ao contrário do que acreditamos, em qualquer das hipóteses a diferença será insignificante. Decorre da nossa proposta que a verbalização fez-se numa língua de influência, ainda não falada na corte, como aconteceu mais tarde: Ce roi (fra. este rei) ~ Crois (fra. cruz)[4].
Ambos os termos em confronto, Ce roi e Crois, produzem uma homofonia absoluta após providencial intervenção metonímica, ocasionando um índice de discrição nulo. A alteração do fonema /s/ em /k/ processa-se segundo a metonimização divergente:
ce (roi) > ce (este) > [se]
c(roi) < c (letra cê) < [se].
A metonímia é divergente porque, a partir de um mesmo elemento - a fonemização em [se] da palavra ce e da letra cê - fornecem-se duas interpretações distintas. Ambas estão no denominante, com /s/ a montante e /k/ a jusante, produzindo artificialmente a palavra croi, desprovida de sentido, útil apenas no emparelhamento fonético com crois. Note-se que a metonimização dos fonemas ocorre na etapa de sematização por tratar-se de uma mudança semântica e não na fase de acomodação, fundamentalmente fonética.
Ce (fra. este) cumpre uma função importante na construção da parofonia mas apenas estabelece uma monossemia elementar. Refere redundantemente que este rei é o rei de que se fala e que será representado nas armas parofonizadas. A sematização da cruz é ainda mais simples porque não há que usar qualquer artifício, a cruz do designante produz a cruz do traço heráldico, ponto final.
É perfeitamente cabível uma cruz feita de ouro, bronze, madeira ou qualquer matéria que lhe dê a cor amarelada. De facto a atribuição dos esmaltes, especialmente nas armas de fantasia, sintoniza-se amiúde com um material aceitável na figuração, com a descrição habitual “de sua cor” nem sempre usada. Entretanto, neste caso particular as cromatizações resultam de dois planos semânticos específicos e distintos, um para o azul do campo e outro para o ouro dos móveis, como veremos mais tarde. Razão de apresentamos apenas o contorno da cruz na imagem ilustrativa.
Os complementos redundantes são os de costume excepto no que toca à orientação da cruz. Exaustivamente conformada pela nossa cultura é bem evidente que uma cruz de sentido genérico só poderá estar com os braços paralelos ao horizonte visual. Não é assim na cruz de Santo André mas torna-se necessário especificá-la pelo nome. Trata-se, portanto, de uma imanência cultural da cruz, embebida no seu traço heráldico de orientação e na própria palavra.
Seria ainda necessário justificar a presença dos lises nas extremidades da cruz. Há uma enorme variedade de cruzes na heráldica, diferenciáveis pelas espessuras, formas, número e extensão dos braços mas, sobretudo, pelo arremate das extremidades. Será possível que cada formato possa estar ligado a uma justificação semântica através do referente?
Não podemos responder à pergunta, apenas nos ocuparemos deste exemplo por agora; o conjunto das propostas que formos apresentando no futuro encarregar-se-á de delimitar as atribuições respectivas. Os argumentos nem sempre radicarão num desígnio semântico absoluto, poderão tratar-se de complementações que, fugindo ao enfeite inconsequente liguem-se, ainda que de modo débil, ao enredo heráldico.
Deveremos introduzir aqui a definição de aspecto, conceito sempre ligado às figurações, especialmente as geométricas. É muito semelhante à noção clássica de atitude que descreve a postura dos animais. O aspecto é a parte de uma figuração que se diferencia caracteristicamente de outras figurações semelhantes por meio de um detalhe formal. Não sendo uma figuração independente em si mesma, o aspecto ajuda a identificar vários tipos ou modelizações de um mesmo desenho. O endentado e o ondado das faixas, os palhetões e as argolas das chaves, as pétalas e os espinhos das flores, as orelhas e as nervuras das vieiras exemplificarão suficientemente.
Voltando à necessidade da nossa justificativa, apesar de roi designar textualmente o rei, a associação deste conceito através da expressão visual de uma cruz grega simples não é de nenhum modo aparente. De mais a mais, na maior parte das parofonizações reais que estudámos verificou-se esse modo de analogia heterogénea entre a linguagem e a imagem. A maneira mais fácil de designar um rei apenas por um objecto é o uso de uma coroa, mais raro será ver o traço de aspecto numa cruz diferenciado por uma ou mais coroas.
Singularmente, para o rei de que nos ocupamos é possível encontrar uma peça histórica de relevo: a Coroa de Santo Eduardo[5]. O artefacto actual é uma jóia da Coroa Britânica, cópia de outra que existiu antes, esta talvez usada pelo referente. Se assim aconteceu de facto, não é demasiado importante, mas sim que o autor das armas pudesse estar convencido da sua autenticidade ou representatividade. Como a Coroa de Santo Eduardo apresenta quatro florões na sua circunferência, cada um deles deve ter sido incorporado às hastes da cruz heráldica obedecendo à metonimização:
rei > coroa > Coroa de Santo Eduardo > quatro florões
rei > Eduardo > Coroa de Santo Eduardo > quatro florões.
A metonímia é convergente, ou seja, sendo composta, ambas as linhas de contiguidade semântica vão ter ao mesmo conceito. Isso também acontece no estudo Salernum ~ Sal eremum relativamente ao sol.
Por outro lado, os florões são elementos habituais e característicos das coroas e mesmo que não existisse o artefacto seria possível fazer a associação; decerto com menor brilho expressivo. A figuração que estudamos é igualmente apresentada sob a forma de cruz patonce, com as hastes concavadas a crescer para o exterior, os lises mais curtos e as pétalas externas em concordância com o perímetro. Não vemos razão para alterar o nosso raciocínio mas comentamos que nesta circunstância poderíamos considerar cada inflorescência como uma coroa muito simplificada, para além dos mais óbvios florões.
[1] HERALDIC TIMES - The Arms of Edward the Confessor - s.d. : Acedido a 18 de Julho de 2012, http://heraldictimes.org/2010/12/10/the-arms-of-edward-the-confessor (inacessível).
[2] MICHELSEN, Mike - The Coat of Arms of Edward the Confessor - Mikes passing Thoughts Blog - 2010 : Acedido a 18 de Julho de 2012, disponível aqui.
[3] LUARD, Henry H. (ed.) - Lives of Edward the Confessor. La Estoire de Seint Aedward le Rei. Vita Beati Edvardi Regis et Confessoris. Vita Aeduuardi Regis qui apud Westmonasterium requiescit - Londres: Longman, 1858 : Acedido a 18 de Julho de 2012, disponível aqui.
[4] GODEFROY, Frédéric - Dictionnaire de l'Ancienne Langue Française et de tous ses Dialectes du IXème au XVème Siècle - Paris, 1880-1895 : Acedido a 18 de Julho de 2012, disponível aqui.
[5] SIDDONS, Michael - Regalia et Cérémonies du Royaume-Uni - Bulletin du Centre de Recherche du Château de Versailles, nº 2 - 2005 : Acedido a 18 de Julho de 2012, disponível aqui.
Eduardo o Confessor - Armas de Fantasia (I) | ||||||||||||
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Classificação | ↓ | Descrição | ||||||||||
Armas de Fantasia | R | Eduardo o Confessor | ||||||||||
Condição | M | Rei | ||||||||||
Língua de Influência | V | Francês | ||||||||||
Denominante | A | ce roi | ||||||||||
Redundância | S | ce | ||||||||||
S | este aqui representado | |||||||||||
Monossemia simples | S | este rei | ||||||||||
S | este rei aqui representado | |||||||||||
Metonímia divergente | S | ce (roi) > ce (este) > [se] | ||||||||||
S | c(roi) < c (letra cê) < [se] | |||||||||||
Grafemização | A | C | R | O | I | ||||||||||
Fonemização denominante | A | k | R | w | a | ||||||||||
Emparelhamento | A | k | R | w | a | ||||||||||
A | k | R | w | a | |||||||||||
Coeficiente de transposição | A | 0,0 | 0,0 | 0,0 | 0,0 | ||||||||||
Coeficiente de carácter | A | 0,0 | 0,0 | 0,0 | 0,0 | ||||||||||
Coeficiente de posição | A | 0,0 | 0,0 | 0,0 | 0,0 | ||||||||||
Parcelas | A | 0,0 | 0,0 | 0,0 | 0,0 | ||||||||||
Índice de discrição | A | k = 0,0 | ||||||||||
Fonemização designante | A | k | R | w | a | ||||||||||
Grafemização | A | C | R | O | I | S | ||||||||||
Designante | A | crois | ||||||||||
Artefacto | E | cruz | ||||||||||
Monossemia simples | S | cruz | ||||||||||
S | cruz | |||||||||||
Esmalte | H | De azul | ||||||||||
Número | H | 1 | uma | |||||||||
Figuração | H | cruz | cruz | |||||||||
Simetria | C | radial | ||||||||||
Orientação | C | imanência | ||||||||||
Centralidade | C | abismo | ||||||||||
Metonímia convergente | S | rei > coroa > Coroa de S. Eduardo > 4 florões | ||||||||||
S | rei > Eduardo > Coroa de S. Eduardo > 4 florões | |||||||||||
Aspecto | H | rei | florenciada | |||||||||
Localização | C | arrematam cada haste da cruz | ||||||||||
Orientação | C | o pé para o interior | ||||||||||
Simetria | C | = cruz | ||||||||||
Esmalte | H | em ouro | ||||||||||
Localização | H | acantonada de | ||||||||||
Número | H | quatro | ||||||||||
Figuração | H | merletas | ||||||||||
Conectivo | H | e | ||||||||||
Número | H | mais outra | ||||||||||
Localização | H | em ponta | ||||||||||
Número | H | todas | ||||||||||
Esmalte | H | do mesmo |
(próximo artigo nesta série II/VI)
(poderá ler 1º um artigo mais simples aqui ou usar a terminologia / pesquisa)
Tratando-se das armas fantasiosas de um personagem que também não pertence ao domínio das pessoas tangíveis, as considerações históricas não são tão determinantes como em circunstâncias autênticas; isso não quererá dizer que deixem de se ater à realidade. Existem distintas versões que descrevem Sagremor, apenas retemos a mais consensual e que parece corresponder às armas em estudo, decerto devem tê-las inspirado. Sagremor, dito “O Desvairado”[1], “da Hungria” ou “de Constantinopla” era um dos Cavaleiros da Távola Redonda, filho do rei da Hungria e da Valáquia, que tinha vindo à corte do Rei Artur para juntar-se à mãe, Indranes, filha de Adriano, imperador de Constantinopla, entretanto viúva, agora casada com o rei Brangore[2]. Esta escassa biografia é suficiente para que desenvolvamos a nossa análise, tanto mais que no método parofónico devemos, acima de tudo, determinar bem a situação geográfica na génese do brasão. Além disso, Sagremor foi usado por nós como paradigma para o estabelecimento de um limiar comparativo com o objectivo de medir o índice de discrição[3]. Assim este estudo tem o atractivo suplementar de não poder ter sido escolhido em função de uma qualquer conveniência facilitadora da nossa tarefa.
O latim deverá ser a língua mais adequada para activar o processo de verbalização que se nos apresenta. Desconfiamos da capacidade de expressão em húngaro do criador das armas e verificamos mais uma vez a longínqua situação geográfica do tema armorial em relação a este, possivelmente na esfera anglo-normanda ou francesa. A metonímia do referente neste segundo nível semântico recorre ao gentílico dos nascidos na capital húngara ao tempo do Rei Artur, Aquincum, junto à actual cidade de Buda, embora a continuidade de ambas talvez não se verifique. Contudo, o enredo das lendas arturianas é tipicamente contemporânea aos seus autores medievais, daí que Aquincum deva referir Buda, como versão para o latim, e não a própria Aquincum. Penso que Aquincenses não descreva os súbditos húngaros daquela cidade mas, particularmente, a origem familiar de Sagremor. Seria possível usar o singular, Aquincensis, para centrar melhor o foco semântico na pessoa em epígrafe.
O cálculo do índice de discrição não apresenta quaisquer novidades pelo que, desta vez, não justificaremos em pormenor a sua obtenção. As análises anteriores serão suficientes para compreender os procedimentos usados. Apenas observamos que o valor final, k = 0,31, é perfeitamente credível, levando-nos a acolher a hipótese parofónica. Obtida a parofonia Aquincenses ~ Ac quini sentes, passaremos a analisar cada um dos seus termos.
A conjunção aditiva ac (lat. e) não é apenas um artifício parofónico. Na verdade faz depender o conjunto ac quini sentes de outros componentes parofónicos que eventualmente viessem a aparecer. Neste aspecto é uma redundância porque os traços heráldicos dependem, na verdade, do seu próprio processo de sematização. Diga-se que não sabemos qual a ordem original pela qual constituíram-se os traços heráldicos; é admissível que, de um modo geral, fosse um processo repetitivo, ajustando-se a pouco e pouco uma solução satisfatória. O termo quini (lat. cinco cada um) denota não apenas a quantidade cinco mas também que ela diz respeito a mais do que uma figuração. Por inerência sugere que se disponham estes cinco sub-elementos num arranjo, interpretado como um polígono estrelado. Estabelecidos o numeral e a conjunção, seria útil mais concisão no terceiro termo, permitindo determinar algo de substantivo para o desenho do brasão. Isso fez-nos preferir sentes (lat. silvas, espinhos) a sentis (lat. sentes, percebes) ou ao declinado sentus/sentis (lat. espinhoso) ou mesmo ao parofónico censes (lat. contas, avalias).
A etapa de sematização realiza-se por monossemia simples, se bem que não seja perceptível de imediato. Só através da metonímia cinco espinhos › cinco pontas › estrela fica estabelecida uma ligação clara entre o designante e o traço heráldico. A escolha de um tema geométrico ou astronómico em lugar de, por exemplo, um traço vegetalista, uma espora ou um estrepe, poderia nos fazer suspeitar da existência de uma simplificação extremada, habitual na heráldica mais antiga. Não pondo inteiramente de parte este contágio, é de assinalar que o terceiro nível semântico, a estudar no próximo artigo, exige a temática sideral.
Apesar da simplicidade é preciso consignar o efeito dos agentes de complementação, intrínsecos à construção dos traços. Logicamente, há uma simetria radial dos raios estelares e as figuras estão orientadas segundo uma estabilização horizontal, na única posição possível para o “apoio” simultâneo em duas pontas. Mais ainda, cada localização depende fundamentalmente da posição da estrela negra. Esta surge no centro do cantão e a partir daí fica condicionada a posição da segunda estrela, no alinhamento da primeira e a uma igual distância da borda. A terceira deverá colocar-se no eixo vertical, obedecendo também à homogeneidade dos distanciamentos. A disposição em contra-roquete acompanha a forma geral do escudo e por esta mesma razão é sempre a favorita para o arranjo de três figurações, não sendo necessário enunciá-la no brasonamento. Resta manter as proporcionalidades dimensionais pelo preenchimento harmónico do campo e impor a absoluta igualdade das figurações.
Esta versão das armas de Sagremor obedece integralmente à lei dos esmaltes[4]. Será mesmo esta normativa que ajudará a compreender mais tarde a razão da sua escolha. Por agora limitar-nos-emos a reter a ligação do metal dourado das estrelas ao fenómeno luminoso, conexão bem frequente nas análises efectuadas no passado. Também é possível que estas figurações fossem tomadas por planetas, dados a sua dimensão aparente e brilho que tende ao amarelado. Um brasonamento descreve: “de gueules à 2 planètes d'or, au franc-canton d'argent à une planète de sable”[2].
Seria viável usar outros esmaltes como o prateado ou o azul mas a conjugação de todas as cores necessárias ao desenho não o aconselhará. Por outro lado, a presença de uma estrela negra, inexplicável pela imanência luminosa, entende-se perfeitamente ao avançarmos que representa o seu oposto, a escuridão. Este obscurecimento é semanticamente transitório e por isso o segundo nível deverá ser representado por todas as três estrelas em dourado. Por último, referimos que a partir daqui representaremos os traços de outros planos semânticos pela cor amarelo-banana[5], de modo a realçar apenas os elementos pertinentes à discussão.
[1] Tradução livre de desreez › dérangé.
[2] MERLET, Lucien - Coutumes des Chevaliers de la Table Ronde - Mémoires de la Société Archéologique d'Eure-et-Loir - Tomo VI - Chartres - Petrot-Garnier Libraire - 1876.
[3] Por Michel Pastoureau ter sugerido umas armas falantes Sagremor ~ sycomore, a nosso ver no limite da razoabilidade, daí tornar-se num limiar adequado para a aceitação das demais parofonias: “Pour doter Sagremor d’armoiries la solution la plus simple aurait été de lui donner une figure parlante, en occurence un sycomore”, nas Referências Bibliográficas (PASTOUREAU, 1986, p. 25).
[4] Ver, contudo, a versão, quase certamente adulterada, que se menciona em: SCOTT-GILES, Charles W. - Some Arthurian Coats of Arms - Coats of Arms - nº 64-65, 1965/1966 - Baldock: Acedido a 27 de Junho de 2012, disponível em: <http:// www.theheraldrysociety.com>, 2012.
[5] Cor que dificilmente aparecerá nos brasões, evitando-se ambiguidades, e de contraste satisfatório com os esmaltes heráldicos.
Sagremor - Armas de Fantasia (II) | ||||||||||||
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Classificação | ↓ | Descrição | ||||||||||
Armas de Fantasia | R | Sagremor | ||||||||||
Demónimo | M | Budenses | ||||||||||
Língua de Fantasia | V | Aquincenses (latim) | ||||||||||
Denominante | A | Aquincenses | ||||||||||
Grafemização | A | A | Q | U | I | N | C | E | N | S | E | S | ||||||||||
Fonemização denominante | A | a | k | w | i | N | s | e | N | s | e | s | ||||||||||
Emparelhamento | A | a | k | w | i | N | _ | s | e | N | s | e | s | ||||||||||
A | a | k | w | i | N | i | s | e | N | t | e | s | |||||||||||
Coeficiente de transposição | A | 0,0|0,0|0,0|0,0|0,0|0,0|0,0|0,0|0,0|0,0|0,0|0,0 | ||||||||||
Coeficiente de carácter | A | 0,0|0,0|0,0|0,0|0,0|1,0|0,0|0,0|0,0|1,0|0,0|0,0 | ||||||||||
Coeficiente de posição | A | 0,0|0,0|0,0|0,0|0,0|1,0|0,0|0,0|0,0|1,0|0,0|0,0 | ||||||||||
Parcelas | A | 0,0|0,0|0,0|0,0|0,0|1,0|0,0|0,0|0,0|1,0|0,0|0,0 | ||||||||||
Índice de discrição | A | k = 0,31 | ||||||||||
Fonemização designante | A | a | k | | k | w | i | N | i | | s | e | N | t | e | s | ||||||||||
Grafemização | A | A | C | | Q | U | I | N | I | | S | E | N | T | E | S | ||||||||||
Designante | A | ac | quini | sentes | ||||||||||
Qtde + Geomª + Geomª | E | e cinco + espinhos + cada um(a) | ||||||||||
Redundância | S | existem outros níveis semânticos | ||||||||||
S | e | |||||||||||
Monossemia simples | S | estrelas | ||||||||||
S | cinco espinhos cada uma | |||||||||||
Esmalte | H | De vermelho | ||||||||||
Número | H | um | ||||||||||
Separação | H | cantão | ||||||||||
Esmalte | H | de prata | ||||||||||
Conectivo | H | e | ||||||||||
Número | H | cada, 3 | três | |||||||||
Metonímia simples | S | 5 espinhos > 5 pontas > estrela | ||||||||||
Figuração | H | 5 pontas | estrelas de cinco pontas | |||||||||
Imanência | C | estrela | ||||||||||
Simetria | C | radial | ||||||||||
Orientação | C | estabilidade | ||||||||||
Localização | C | estrela negra | ||||||||||
Disposição | H | 2, 1 | (em contra-roquete) | |||||||||
Imanência | C | constelação | ||||||||||
Preenchimento | C | área do escudo | ||||||||||
Simetria | C | eixo do escudo | ||||||||||
Centralidade | C | abismo | ||||||||||
Número | H | 3 - 1 = 2 | duas | |||||||||
Esmalte | H | luz | de ouro | |||||||||
Imanência | C | estrela | ||||||||||
Contraste | C | vermelho | ||||||||||
Conectivo | H | e | ||||||||||
Número | H | uma | ||||||||||
Esmalte | H | de negro | ||||||||||
Localização | H | no cantão |
(próximo artigo nesta série II/III)
Escudo assinalado no Armorial de Zurique (Zürcher Wappenrolle) que se data de meados do século XIV, acompanhando várias outras armas de fantasia. Para a nossa análise tem o benefício de ser consensualmente reconhecido como falante, pelo menos na metade anterior relativa à porta. Os autores do texto e dos brasões parecem ter sido a mesma pessoa, inferindo-se daí uma data de execução simultânea. Apresenta ainda alguns acrescentamentos de mão distinta com letra do século XVI, entre os quais se incluem estas armas que agora estudamos. A interpretação da legenda correspondente seria segundo uns Portugal rex[1], em latim, ou segundo outros Portegalien[2], mais germanizada mas duvidosa. Inclinamo-nos pela a primeira versão, se bem que a leitura seja difícil mas haverá poucas dúvidas de que aquele escudo dizia respeito a Portugal.
Ademais da apreciação paleográfica, algumas destas inscrições suplementares surgem na forma alatinada: Hispania, Britania, Arragon, enquanto outras são decididamente germânicas: Schotten, Rom e Frankreich[3]. De qualquer modo, tratando-se de aditamento tardio, em pouco ou nada influenciaria os considerandos sobre a construção do denominante. Tampouco seria determinativo o idioma usado numa possível legenda original, dado que o brasonamento poderia ser cópia de um armorial precedente ou até de sua própria criação, sem que a verbalização da metonímia do referente seguisse necessariamente o texto. Isso parece acontecer com pouca frequência nos brasões fantasiosos, acreditamos contudo ter ocorrido aqui, empregando-se o latim.
O confronto com outros pergaminhos mostra armas de fantasia comuns ou muito semelhantes entre si como as de Jerusalém, Ruténia e Satrápia. Poderíamos ainda compará-las no presente documento com as entradas: Navarra, Inglaterra e Dinamarca que estão incompletas ou equivocadas, mas tal não se dá, ao tratarem-se, plausivelmente, de armas fantásticas inéditas. Volta-a pôr-se a pergunta do artigo anterior: desconheceria o autor a heráldica verdadeira do rei português? A resposta deverá ser igual; talvez haja mesmo um desconhecimento ainda maior porque não poderemos, de modo nenhum, afirmar a associação do esmalte azul e do besante dourado deste caso com as armas portuguesas.
O denominante parece derivar do referente Portugal enquanto território, a acreditar no texto junto às demais entradas originais do Armorial. Recorremos de seguida à lingua-franca latina, que classificamos desta vez como língua de fantasia, para constituir Portucalis em denominante[4]. A solução encontrada no par denominante-designante: Portucalis ~ porta cales, não é uma parofonia perfeita como o antecedente Portingale ~ porte ingal tratado em Portugal - Armas de Fantasia II, pois apresenta agora um índice de discrição k=0,30. Melhorámos, contudo, a proposta apresentada na dissertação: Portegalien ~ porta galla. E isto não só pelo critério da valorização do índice k mas também pelo hibridismo germano-latino aventado inicialmente e pela falta de integração com os traços restantes do escudo.
Pormenorizaremos a sequência de cálculo. Começamos por emparelhar as palavras, de modo a verificarmos coerentemente os sons a corresponderem-se em ambas, tendo-se achado o total de n=10 fonemas para cada um. Já sabemos que fonemas correspondentes idênticos sofrem penalização nula e que não ocorrendo, como dá-se frequentemente, deixarão de contribuir para o somatório, efectuado carácter a carácter. Da mesma maneira não encontramos transposições fonéticas e o coeficiente respectivo é nulo em todos os pares de fonemas. Existem apenas duas transformações. A primeira, mais notória, de /u/ em /a/, penaliza-se com o coeficiente de carácter c=1,0; a segunda, mais ligeira, de /i/ em /e/, recebe a penalização c=0,5. Quanto à penalização pelo lugar ocupado pelos fonemas nos vocábulos acham-se ambos no seu interior, implicando coeficientes de posição iguais p=1,0. Multiplicamos membro a membro e somamos obtendo o valor intermédio 1,0 x 1,0 + 0,5 x 1,0 = 1,50, cujo resultado multiplica-se pelo quociente 2/max(10,10) = 2/10 = 0,2, obtendo-se 1,50 x 0,2 e k=0,3. Sendo o índice de discrição k inferior à unidade podemos aceitar a proposição Portucalis ~ porta cales como parofonia heráldica.
O designante porta (lat. porta) cales (lat. estás quente) constitui uma monossemia composta por exprimir dois sentidos diferentes e ocasionar outros tantos traços heráldicos distintos, porém integrados semanticamente mediante composição metonímica. A porta está bem visível no traço heráldico e não oferece dificuldades de monta. O segundo termo, cales, ao integrar-se no ambiente estabelecido por porta, metonimizar-se-á em: estás quente > lugar quente. Deveríamos então responder à pergunta - Qual o lugar quente provido de uma porta? Pareceria aceitável prosseguirmos a metonimização assim: estás quente > lugar quente > Inferno. Esta solução mostra muito boa sintonia com a outra parte da metonímia composta, a convergir por meio do designante através de: porta > morada > Inferno.
Mesmo se pudermos considerar estes argumentos razoáveis não é nada razoável supor que o hipotético desenho do campo vermelho com uma porta pudesse ser entendido como o endereço de Satanás. Era preciso, consequentemente, refinar o arranjo, sem desobedecer à norma básica da simplificação a regrar o brasonamento medieval. Pensamos ter-se recorrido a opor um Céu ao Inferno, de modo que esta oposição afastasse quaisquer incertezas quanto ao assunto tratado. Complementou-se também o traço heráldico recorrendo a uma única metonímia do referente, desconsiderando desenhos por demais trabalhosos, como convirá e aparece recorrentemente na fantasia armorial.
O Inferno vê-se parcialmente no esmalte vermelho do vão da porta que, por sua vez, se representa a si mesma no designante porta. O Céu é o esmalte azul externo, enquanto o Sol, astro celeste por excelência e, neste aspecto, algo redundante, será pretensamente responsável pelo calor do Inferno, sem dúvida graças à Mão Divina. O astro-rei é uma simplificação, transformado em besante ou mesmo em bola[5]. O facto de não aparecer radiante como se usa no brasonamento pode explicar-se por emergir na etapa de sematização. Não se trata de peça principal, a gozar da plenitude semântica ou, caso secundária, de complementação inteiramente desprovida de sentido.
Na forma de adereço, o Sol é um elemento necessário ao entendimento da sematização do Céu, com o traço azul, e do Inferno, com o traço vermelho, inspirado secundariamente no calor solar. Apesar disso, incorpora alguma simplificação, além de imanências e contraste na sua outra qualidade de complemento visual. Algumas destas ideias poderiam ter nascido das numerosas passagens bíblicas à disposição dos autores, influência habitual na época, como por exemplo[6]: " ... Eles subiram a planície da terra e cercaram o acampamento dos santos e a cidade predilecta. Mas um fogo que caiu do céu devorou-os. O Diabo, que os tinha enganado, foi precipitado no lago de fogo e de enxofre, onde também estão a Besta e o Falso Profeta ... ".
As complementações usadas não modificam o desenho excepto em pormenores, quase todos demasiado notórios, como a orientação horizontal da porta, os contrastes e as imanências. No que se refere às duas folhas da porta, elas são necessárias pela simetria do traçado. Há a exigência semântica de mostrar o interior encarnado, conduzindo ao traço heráldico da porta aberta, inevitavelmente desequilibrada se apresentasse uma só folha. Os esmaltes do aro e da porta são da mesma cor, justificáveis pela regra da simplificação mas também coerentes com as cores da pedra e do metal a eles correspondentes. A madeira pareceria inadaptada a um Inferno abrasador. Inexistindo a parede reforça-se a ideia dissimulada ou recôndita atribuída à localização do abismo infernal. Por último, acrescentamos que não se põe a possibilidade de considerar apenas o arco e daí representar o Inferno sem porta. Isso seria, literalmente, deixar o Diabo à solta ![7]
[1] RUNGE, Heinrich - Die Wappenrolle von Zürich - Ein Heraldisches Denkmal des Vierzehnten Jahrhunderts - Zurique: Antiquarischen Gesellschaft in Zürich, 1860.
[2] CLEMMENSEN, Steen - The Zürich Armorial (Wappenrolle von Zürich) - Farum: Acedido a 31 de Janeiro de 2012, disponível em: <http://www.armorial.dk>, 2009.
[3] BIGALSKI, Gerrit - The Zürich Roll of Arms - Acedido a 31 de Janeiro de 2012, disponível em: < http://www.silverdragon.org/HERALDRY>, [s.d.].
[4] A sequência recorrente: referente - metonímia do referente - verbalização - acomodação - sematização - especificação - traço heráldico - complementação, é a mesma do exemplo anterior e está desdobrada na tabela que segue mais abaixo.
[5] Talvez porque aparente estar sustida pela porta.
[6] Ap 20, 9-10, ver AA. VV. - Bíblia Sagrada - Lisboa e Fátima: Difusora Bíblica, 4ª ed. 2003.
[7] Repetem-se, por comodidade, as abreviaturas menos evidentes usadas na tabela: Referente (R), Metonímia do Referente (M), Verbalização (V), Acomodação (A), Sematização (S), Especificação (E), Traço Heráldico (H) e Complementação (C).
Portugal - Armas de Fantasia I | ||||||||||||
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Classificação | ↓ | Descrição | ||||||||||
Armas de Fantasia | R | Portugal | ||||||||||
Territorial | M | Portugal | ||||||||||
Língua de Fantasia | V | Portucalis (latim) | ||||||||||
Denominante | A | Portucalis | ||||||||||
Grafemização | A | P | O | R | T | U | C | A | L | I | S | ||||||||||
Fonemização denominante | A | [ p | O | r | t | u | k | a | l | i | s ] | ||||||||||
Emparelhamento | A | [ p | O | r | t | u | k | a | l | i | s ] | ||||||||||
A | [ p | O | r | t | a | k | a | l | e | s ] | |||||||||||
Coeficiente de transposição | A | 0,0|0,0|0,0|0,0|0,0|0,0|0,0|0,0|0,0|0,0 | ||||||||||
Coeficiente de carácter | A | 0,0|0,0|0,0|0,0|1,0|0,0|0,0|0,0|0,5|0,0 | ||||||||||
Coeficiente de posição | A | 0,0|0,0|0,0|0,0|1,0|0,0|0,0|0,0|1,0|0,0 | ||||||||||
Parcelas | A | 0,0|0,0|0,0|0,0|1,0|0,0|0,0|0,0|0,5|0,0 | ||||||||||
Índice de discrição | A | k = 0,30 | ||||||||||
Fonemização designante | A | [ p | O | r | t | a | _ | k | a | l | e | s ] | ||||||||||
Grafemização | A | P | O | r | T | A | _ | C | A | L | E | S | ||||||||||
Designante | A | porta | cales | ||||||||||
Monossemia composta | S | porta | estás quente | ||||||||||
S | porta | lugar quente | |||||||||||
Arquitectura + Notoriedade | E | porta + Inferno | ||||||||||
Esmalte | H | céu | De azul | |||||||||
Contraste | C | prata, ouro | ||||||||||
Oposição | S | Inferno x Céu | ||||||||||
Número | H | 1 | uma | |||||||||
Figuração | H | porta | porta | |||||||||
Preenchimento | C | área do escudo | ||||||||||
Simetria | C | eixo do escudo | ||||||||||
Orientação | C | horizontal | ||||||||||
Centralidade | C | coração do escudo | ||||||||||
Conectivo | H | porta + folhas | com | |||||||||
Número | H | 2 | duas | |||||||||
Figuração | H | metades | folhas | |||||||||
Imanência | C | porta + Inferno | ||||||||||
Simetria | C | porta | ||||||||||
Atitude | H | deixando ver o Inferno | abertas | |||||||||
Esmalte | H | metálico | de prata | |||||||||
Contraste | C | azul, vermelho | ||||||||||
Conectivo | H | porta + vermelho | iluminada | |||||||||
Metonímia composta 1/2 | S | porta > morada > Inferno | ||||||||||
Esmalte | H | quente | de vermelho | |||||||||
Imanência | C | Inferno | ||||||||||
Contraste | C | prata | ||||||||||
Metonímia composta 2/2 | S | estás quente > lugar quente > Inferno | ||||||||||
Disposição | H | 1, 1 | encimada por | |||||||||
Número | H | 1 | um | |||||||||
Figuração | H | redondo | besante | |||||||||
Imanência | C | Sol | ||||||||||
Simplificação | C | desprovido de raios | ||||||||||
Adereço | C | astro celeste diurno | ||||||||||
Adereço | C | fonte de calor | ||||||||||
Esmalte | H | dourado | de ouro | |||||||||
Imanência | C | Sol | ||||||||||
Contraste | C | azul |
(próxima análise neste blog aqui)
P: A existência dos besantes "em pinha", no mesmo período abrangido pelo estudo, não inviabializa a proposta ali defendida?
R: Os escudetes ditos pelo Barão Pinoteau "em cacho" ou "em pinha", caracterizam-se por aglomerados de besantes dentro do escudo, em número claramente superior aos onze usuais. O facto de existirem, por si só, é uma contradição ao que se propõe na tese, o que posso aceitar. Já não concordo que isso inviabilize a solução que apresentei. Não tratando estes estudos de ciências exactas mas de ciências humanas, outros factores devem, inevitavelmente, ser levados em consideração.